segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O Anúncio

                                       

                                                   O anúncio








          Vende-se romance escrito no século passado. O mesmo abarrotado de fatos e mitos relevantes sobre a humanidade: paixões, intrigas, guerras e principalmente desamores.
Odiar é nossa especialidade. Li e gostei muito.

           O romance em si é sobre a vida de personagens que trombamos nas esquinas do dia a dia, das vizinhanças e que acaso passaria despercebidos se não fosse o olhar atento do poeta que anotou e cantou suas poesias e o fixou em folhas de pergaminho diariamente.

           Inédito e único. Pronto para ser publicado. A não ser que o felizardo comprador queira mudar personagens e título. O título está bem ao gosto do público atual.  “ A pobre vida rica do Sr. Y”.

 Saliento que em tempos normais eu mesmo a publicaria. Mas estamos passando tempos difíceis onde a direita escoiceia e a esquerda rumina. E como a ideia da obra é instigante e alem do seu tempo, temo ser perseguido pelos fins do meu dia. 
Então o comprador terá de ter duas virtudes essenciais: Coragem e poder.

Além disso, sou avesso a fama, por mim o jogaria no fundo de uma gaveta da cômoda velha que ocupa o lado esquerdo do meu quarto, bem perto da janela onde todo dia vejo o sol morrer.  Mas eu acho um descalabro deixar a arte assim presa, arte tem que ser livre como o vento, que às vezes sopra mansinho e ameno outras vezes vem como um furacão levantando o mofo e a poeira escondidos.

 Por isso estou pondo a venda essa relíquia citado em várias  obras como uma lenda. Os títulos foram diversos, por exemplo: A relíquia, O grande romance, O abutre e tantos outros  se pesquisarem com afinco as escritas do tempo de Hamurabi lll na  coleção de Alalaque ou nas literaturas indiana, chechena  e russa.

O único ser vivo que folheou essa escritura foi a senhora  X  que era esposa do senhor Y. E Se ela foi personagem, penso que sua vida foi um escândalo feliz.  
 Dizem que ao ler o primeiro parágrafo ela olhou fixamente para um canto, deu um gemido e em seguida lágrimas transbordaram em borbotões pela face pálida.  Depois leu dia após dia até o ponto final, quando por fim o escritor deu o trabalho por terminado. Isso levou justos oitenta e seis mil e quatrocentas  horas, que foram marcadas na lateral de cada página com um traço de sangue . Quando chegou ao fim, ela olhou pela janela, e viu que já entrava o outono o cheiro da primavera já se esvaíra e o vento sacudia  a copa das árvores  as folhas caindo murchas pelo chão. 

Quanto tempo se passou  ali, perguntou-se. Não houve resposta. Assim ficou mais dez  anos em transe pensando na morte da bezerra.   Nesse dia fazia um calor descomunal  ventava muito. Seus gemidos foram abafados pelo barulho das cigarras de outono. Desconfio que romance tocou-lhe  n´alma.
Penso até em suas digressões:

“Como pode alguém se perder assim na vida sem uma obra construída, cega as coisas que aconteceram ao redor, onde andava o grande amor, os filhos os netos,  as guerra? 
O  que fazer com essa dor, essa solidão que a devorava e que fazia olhar insistentemente por uma janela talvez a ver a luz surgindo todo dia no horizonte?”.

Não tenho certeza se os lamentos de X , foram esses,  se mesmo as lágrimas enfim, foram provocados pelo romance. Sei que o primeiro parágrafo o mestre usou a técnica que para mim soa perfeito, a métrica, o ritmo e cita algo vago como a eternidade, o amor, esse tipo de coisa que foge entre nossos dedos, mas, que é forte chamariz dos que virão, e sem ao menos avisar, preparar, escreve o último parágrafo, como um êxtase e  nos planta um soco no estômago  e quando a dor vem e ficamos tontos nos fala de coisas reais e indescritíveis como a morte,  para no parágrafo seguinte falar de sonhos, sonhos e sonhos.  Ah como sonhamos! A vida só vale pelos sonhos que tivemos. Os realizados ou não, não importa. O que importa  a estrada.

Se tirarmos os sonhos de nossas vidas o que restaria?

Somado isso ele nos leva pela mão com segurança e até certa volúpia e desdém nós, os pobres e comandados leitores. Somos uma corja de apaixonados. Ovelhas nas mãos de lobos. O uivo do poeta nos chama de longe, como um encanto. E caímos em suas garras. Gostamos até de sermos devorados, estrangulado, até a última gota de sangue.

Há de se imaginar também que tais lágrimas poderiam ser devido ao açoite do vento na vidraça ou a imagem das folhas caindo murchas ao chão ou o ciclos interminável da natureza, inverno, outono, primavera e verão, dia e noite, noite e dia,  ou pelos cabelos brancos em desalinhos do velho escritor sentado de costas  trabalhando arduamente em vão como as estrelas que não aparecem de dia,  abafadas pela luz do sol   e ele no limbo a espera de uma rima que não vinha ou pela crise existencial, esse lobo que uiva sem parar nas noites de lua cheia ou o trote do tempo que lá vai rápido como um potro negro.

Isso tudo são algumas imagens fúteis que ela nos traz com seu olhar condescendente. O importante está na alma. As imagens são construídas pela alma. Quem dá cor à cena é o sentimento. A felicidade é colorida e as imagens são grandes e próximas. A tristeza é cinza. Sentimos tão pequenos quando cinza.
Encontrei esse calhamaço de papel numa viagem ao Egito. Numa pirâmide ainda desconhecida pelo grande público. Trouxe escondido numa mochila correndo todos os riscos. O fiscal da alfândega olhou para mim e falou algo, eu fiquei em silêncio e parado como um soldado em posição de sentido. Pois sei que a fala nos corrompe e a escrita nos entrega.

Assim foi.

Fiquei um ano sem saber o que fazer com aquela obra original.
Escrevo algumas crônicas em jornais e tenho o meu blog na internet, mas juro por deus, jamais, digo jamais escreveria uma obra dessas. E as também hoje  pessoas preferem as redes sociais às convivências reais.  É fato. Tudo parece está dominado. Na rua não se cumprimentam. Andam como robôs ouvindo coisas nos fones de ouvidos. E o tempo cavalga em galope rápido e constante como um jovem potro negro.
E arte meus amigos, ela olha-se para dentro, e busca no seu interior sua própria mensagem. Se uma criança sorrir é por que é o que ela tem de expor. Se alguém chora é que foram tocadas em suas feriadas. Arte é espelho que reflete sua alma.
Assim, em virtude disso exposto, ofereço a quem der mais, as mil e uma laudas escritas por grande mestre,  vaticinando o futuro, que essa obra, sem sombra de dúvidas, será o maior  sucesso de público.

Ofereço total segredo para que o comprador possa mudar personagens, título e assinar da forma que quiser como sendo sua a obra e usufruir os louros da fama.
Tenho a absoluta certeza que esses personagens  ganharão o mundo. E eles que em suas vidas normais não foram citados em colunas sociais( notas que só alcança o ego das bestas) em conhecendo-se suas desventuras, amores, paixões e morte, serão  de grande relevância na história.

E o dono do título com certeza  o levará ao tão cobiçado premio Nobel de literatura, ficando ainda com a parte que a maioria deseja(  improfícuo em minha opinião ), terá direito ao  fardão na academia, o chá das tardes com os iguais, notas em jornais, mulheres fáceis e dinheiro.

Podem até acharem que é utopia vendê-la dessa forma, uma resma escrita à mão.  Escrito muitas vezes á luz de velas como já disse o escritor, “ouvindo estrondos de bombas caindo ao redor quando participei da primeira guerra mundial como soldado raso,  guerras que eu não arranjei, mas combati com afinco e escrevi algumas linhas dessas com o coração disparado  à espera da  hora correta de subir as trincheiras e estripar o inimigo. Não é glória estripar alguém como  a um porco. Mas fazemos assim mesmo,com sangue frio.

Outras vezes escrevi no lombo de um camelo em caravanas pelo deserto do Saara. Participei até de uma viajem com  “El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha” e ouvi de sua boca, “Senhor, uma andorinha só não faz verão.” Por um mês andei assim o seguindo em suas batalhas. Por fim quando cansei de sonhar ele me falou com sua figura triste: “Cada um é como Deus o fez e ainda pior muitas vezes”.

A partir desse ponto seguimos calados uns duzentos quilômetros. Foi quando ele parou no cimo de um monte e soltou essa: “Esse meu mestre, por mil sinais, foi visto como um lunático, e também eu não fiquei para trás, pois sou mais pateta que ele, já que o sigo e o sirvo, se é verdadeiro o refrão que diz: ‘diga-me com quem anda e te direi quem és’ e o outro de ‘não com quem nasce, mas com quem passa’.” 

Eu já não pensava direito, via imagens nas planícies. Então para não enlouquecer decidi seguir sozinho. Ele ainda disse:  “A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os homens receberam dos céus. Com ela não podem igualar-se os tesouros que a terra encerra nem que o mar cobre; pela liberdade, assim como pela honra, se pode e deve aventurar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pôde vir aos homens.”  Sancho ouvia tudo calado.

A imagem deles que ficou comigo foi de dois pobres diabos ricos em sonhos. Nunca mais nos cruzamos novamente.
 Outras vezes escrevi na cabine de um navio, singrando mares com um capitão louco para matar uma baleia. Quase morremos sendo comido por canibais.
O Conto de Genji  é considerado o primeiro romance literário do mundo, de autoria atribuída a fidalga Murasaki Shikibu, escrito no começo do século XI, durante o Período Heian da história do Japão. Mas com essa descoberta tudo cairá por terra. E isso, só isso trará muitas confusões, abalará estruturas, egos e etc.

Faço tais citações para saberem o quanto é grandiosa a obra.

Para que vocês fiquem certo que esse negócio é certo pois nessas  páginas encontrarão sangue, suor e  lágrimas.  São muitas noite solitárias.   E o comprador terá livre arbítrio de colocar os capítulos na maneira que lhe aprouver. Assim ficará livre do ônus da obra. Principalmente das críticas. Terá o nome cantado em canções e operetas. Até Camões, não sei como como, escreveu certas coisas que confrontados hoje, parecerá plágio.
Fernando pessoa, veja bem, na criação de suas personalidades teve com certeza influências.

E pop fim o comprador fundamentalmente não terá obrigação nenhuma com a arte, pois será mera mercadoria, - um produto comercial, -um escambo e assim como disse o escritor no prefácio, “Cedo-vos o alimento da alma, cedes-me o alimento do corpo.

E ficamos quites.

Está aberto o leilão.