terça-feira, 17 de novembro de 2009

Conto de uma lauda

A viela era de uma favela qualquer, feliz por assim dizer, aparentemente.
O galo dava seu primeiro canto, com o gogó cheio. Nos barracos os roncos eram frenéticos de sonhos densos, pesados como uma cortina de ferro.
Uma névoa fina cobria aquela parte do morro virado para o mar. As ondas sem formas oscilavam lenta na praia na batida de um tempo comprido.
Súbito ecoou na escuridão um tiro. Rompendo a densidade preta da noite, como um lampejo seguia sua trajetória resoluta. A paz aparente estremecera. Retesaram os nervos. Ocuparam nas mente memórias infelizes. E se acaso a felicidade existisse, naquele momento romper-se-iam os elos, casais se separaram, carinhos interrompidos e o cheiro já não era de amor, mas de pólvora.
Olhou para o mar. Este estava azul escuro, e era orgulho de todos, pois a favela ficava de frente e este era testemunho com suas belezas distantes e sombrias. Já tentara desvendar seus mistérios em vão. Essas coisas são indecifráveis. A vida era assim. É assim.
A viela em que andava agora soturno exalava cheiro de sexo, até o mar se encontrava com o céu no infinito.
Outro tiro. Como o quebrar de uma vidraça, dilacerando terrivelmente o silêncio.
Nos olhares a angústia e o vazio. A esperança perdida. Mãos sustaram carícias. Frases cortadas sem nexo, sem sexo as mãos em ristes, ríspidas, tornaram-se indefinidas, indiferentes. O cheiro já não era de amor, mas de pólvora. A mágica fora quebrada, as frases curtas sem adjetivos. Novamente o barulho ensurdecedor. Bala, bólido, grito, baque. Um corpo caído. Angústia no olhar, na boca o gosto amargo na mente o vazio. Depois o soluço, a rigidez no andar, a imagem da ilha, a sua imagem uma ilha, sentia-se só como uma ilha, a pequena ilha que via nas noites de luar, agora balançava indefinida.
Um baque surdo de osso quebrado, como o estrondo de um boi morto, carnes sem vida. Uma frase cortada ao meio, dilacerada num grito:
-Deus me...
Muitas vezes ouvira aquele mesmo estrondo de carne no matadouro, o urro do touro nos seus últimos momentos, depois os nervos retesavam-se em suspiros, o relaxar dos músculos, liberando os fluidos impuros, expelindo fezes e urina.
Passos apressados nas escadas oscilando entre,
Silêncio e desespero.
Distante ouviu ainda passos apressados, o eco nas escadas escuras, o eco longínquos dos passos do pai, um murmúrio da mãe, calma filho é só um sonho um terrível pesadelo, mas que vais acordar logo...
...salve mãe, papai já chegou com os pães, sinto cheiro do café, Filho agüente! Meu Deus tanta tristeza, Onde estará Deus agora...
Medo e silêncio.
Silencio.
... senhora tome uma vela, para guiar seus caminhos, não permita meu Deus. Deuusss!
Depois um grito ecoou como um uivo tão angustioso, queimando as entranhas.
-Mataram meu filho! Meu filhinho... Filho!
Os corações descompassaram, acalmaram-se já. Cada um puxou para si o egoísmo e voltaram a dormir como se não houvera nada.
Uma luz tênue iluminava um corpo perdido numa rua qualquer.