sexta-feira, 2 de março de 2018

A oficina









          Um dia desses, resolvi fazer uma oficina de escrita. Eu comigo mesmo. A ideia era pegar uma notícia e transformar num conto. Escolhi o drama. Fisguei na coluna policial. Um assassinato. A morte dessa forma causa estranheza e drama. O natural é de velhice. Os pais primeiros que os filhos, sucessivamente.

           Escolhida a notícia mãos á obra. Comprei uma resma de papel tamanho a quatro.  Foram meses de anotações. “Se dobrarmos um jornal como um pano molhado pinga sangue”.  Os personagens  foram vizinhos, amigos, família, todos entraram no rol.  Depois vou descartando.  
 Tenho a estrutura, a planta baixa como disse Autran Dourado e vou capengando na jornada do herói.
Vou escrevendo sem medo. O escritor deve ter coragem de se expor, mostrar as vísceras, as feridas. Isso serve de remédio  para  curar alguma doença com o tempo. A ferida deve ser aberta logo no início, para chamar a atenção do leitor. Basta uma lauda para que fisguemos ou o perdemos.  A isca tem que ser bem feita, tem que ter odor, beleza, som, sensibilidade e  gosto.

          É como vê uma pessoa espremer um limão em sua boca.  Só em pensar suas papilas e glândula produzem saliva. A escrita deve ser assim também. Se o texto é para causar medo, sua adrenalina vai subir em porcentagem em seu sangue e assim por diante, os parágrafos deve causar ódio, ira, náuseas, êxtase e gozos
.
          Não tenha medo. Ame o personagem  e  odeie outros, pois no dia que não sentires nada, é o fim.
          A escrita é terapia. Já deixei de matar muita gente por que escrevo. Os motivos são vários. Cada um tem o seu. Faço assim: Vou falando sem medo como estivesse na poltrona do psicanalista. Se não gostar da figura do psiquiatra, fale para um gravador. Imagine falando com o melhor amigo, se preferir sua mãe ou até em confissão com um padre. Mas seja honesto. Pois a honestidade é o caminho para surgir algo bom, que valha a pena publicar. Mas não se iluda. A gênese não é palpável. Você às vezes escreve pilhas de papel para surgir uma frase, uma frase somente. O resto deve ser jogado no lixo. Os  escritores, observação própria, criam mais lixo. Mas não esmoreça. A prática  melhora a técnica. Ou você pensa que algo bom brota  com a inspiração. Não. Como já disseram antes, noventa por cento é suor. O violonista para ter a técnica ele treina todos os dias um mesmo solo  até a exaustão. O tenista para sacar perfeito, bate na bolinha amarela mais de mil vezes. E haja suor. E porque você acha que o escritor deve confiar somente na inspiração? Neca de Capiberibe! Isto quer dizer: “Nunca, jamais!”, como o corvo repete na poesia de Poe. Aliás há um tutorial nessa poesia. Ele dá o caminho das pedras.

          E assim peguei o vício da escrita. Já larguei o cigarro, a bebida, mas não fico sem escrever algo nenhum dia. E leio bastante. A leitura é osmose. Sem notar tem muito dos outros em mim. Fazemos parte de um todo. Um emaranhado,  tecendo outras histórias , outras vidas.

          Um dia viajando de trem, eu vi alguém numa parada.  Uma mulher. De relance. Mas essa cena ficou em minha mente. Eu tentei escrever algo, primeiro um poema. Falava dos seus olhos negros. Falei das malas, das bagagens. Não decolou. Às vezes acontece assim. E é melhor. Um dia sem esperar ela vai surgir, tenho certeza. Assim vou olhando cada esquina. Cada parada.

          O que faço muitas vezes é estudar alguns textos. Tentar decifrar como aquele autor conseguiu aquilo, o ponto do bolo, sem queimar, e sem passar do ponto. Lembro de minha mãe seguindo as receitas com todo cuidado. E os bolos muitas vezes ficavam fantásticos. Ela se tornava cada vez mais “Expert” no assunto e depois conseguia fazer  sem receita e ao mudar alguns ingredientes e fazer um novo, só seu, ficava feliz.  Era o bolo mais gostoso do mundo. Feito com carinho e amor.  É o que fazemos. Destrinchamos textos para compreendê-los.

          E importante. Não elimine cenas  só por que você já viu parecida noutros romances. Todos têm visão diferente das coisas. Já pensou se ninguém mais pudesse falar de um pôr do sol só por que alguém já falou? Mude seu ponto de vista ou use o mesmo com outras palavras. Afinal ninguém é dono de uma cena. Ou é? E se a cena afinal não ajudar em nada a narrativa, descarte-a agora se tiver importância crucial para ressaltar algo a mantenha sem preconceito.  A história sim tem que ser diferente, o resto pode ser comum. Um crime é comum até colocarmos os sentimentos, responder perguntas, aflições...

          “Ele não saiu pronto para matar e matou...”.
Apaguei.

         “Uma bala é confeccionada por um ser, para ganhar salário, sustentar a família e filhos e tirar vidas...”.

Descartei.

          “Antes de sair, sem desconfiar do que ia acontecer, rezou, tomou café com a família e saiu...”.

Ridículo.
          “O assassino depois do fato chorou nos braços da mãe da vítima...”

          “Larissa tinha sonhos tão grande, mas findou porque estava na linha imaginária de uma bala perdida...”

          “Ele deu o celular e mesmo assim o ladrão o matou...”.

I     Cursor parado na tela. Esse é o drama.










Gênese













http://www.caldinas.com.br/2011/05/curso-referencias-sobre-campbell-e.html

Gênese


Tão ansioso ao abrir da cortina,
  ator iniciante
Que cega-se a luz e
o ar dói-lhe o peito,
 Desamparado
bem sei
ao redor o desconhecido
chorei
teu seio, meu aconchego
suguei
dormi o sono dos justos
sonhei
Teu colo morno e suave
Brotei
Na minha jornada.



terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Do lar


Foto retirada do site  https://br.123rf.com/photo_12488692_casal-se-beijando.html?fromid=Rk9NNVppOXZ2aXF0QVBTSGRqNFVaQT09



                                                                   Do Lar

         Casados há pouco, eram como dois pombinhos. Viviam se beijando pela casa. Já tinham experimentados todos os cantos para o amor. Muitas vezes pegávamos suspirando “o amor é lindo”. E assim se passou longos anos.

          De resto que Marina agora mãe de gêmeos, achou por bem arrumar uma empregada, tinha muito trabalho, estava fazendo a faculdade uma pessoa  para ajudá-la nos afazeres. 

        O marido era empresário no ramo de exportação e passava quase o dia todo fora. Ele prontamente aprovou, seria também uma companhia. Ele disse. As amigas é que não. Disseram: 

          -Outra Mulher em casa! Menina! Lá em casa não. Nem morta!
A outra:

          - Ainda por cima tão linda! Vejo falar tantas coisas, tem muito homem aí com filhos fora que a trouxa da mulher só sabe no velório. Como dizia meu pai, o porco e homem só se conhece depois de morto.Comigo não jacaré!

          Marina não deu ouvidos, afinal confiava em seu marido. E dele tinha sempre ouvido coisas boas do tipo, um homem elegante respeitador e de família.

          Assim se passaram os anos. Os filhos formaram e na formatura estava lá, a babá que os criara. Recebeu de gratidão buquê de flores e menção no convite.
Era um convite preto, de veludo, com letras desenhadas em dourado muito bonito por sinal, devem ter gastado uma grana. Dizia na folha interna:

“Agradeço aos meus pais Marina e Sérgio, pelo apoio e dedicação,
 “Aos amigos por nos aguentarem esse tempo todo sem reclamar,
“Aos avós tão fofos,
As namoradas,
“E principalmente a Patrícia, nossa segunda mãe, esse anjo que caiu do céu em nossa família, obrigado por toda amor, dedicação e paciência”.

          Marina sorriu no dia, vendo os gêmeos dançando a valsa com Patrícia.As namoradas enciumadas.

          Marina, num vestido longo da cor azul, enfeitada de pedras, deixava partes dos seios a mostra, sem lascívia, somente parte física  formosa que os gêmeos mamaram até os três anos. Pareciam dois bezerros, ela dizia  rindo, com os dentes branquinhos e o lábio rosado. A festa estava linda ela falava e seus olhos brilhavam. As amigas estavam iradas. Uma chutava a canela das outras. Apontavam com acenos.
No outro dia não falavam outra coisa.

          -Como pode tanto “topete”!    Tomando o lugar da mãe na hora mais sublime e orgulho, que é a hora da valsa.
Marina dava gargalhada.
          -O que é que têm meninas, eles a adoram! E ela é uma querida!
          -E você não tem ciúmes?
          -Mas de que? Ainda mais que sou péssima partner. Piso sempre no pé de quem eu danço.

          Diferente de Sérgio. Ele sentiu um baque. Não demonstrou. Na hora até aplaudiu demoradamente. Foi até exagerado. Continuou sozinho depois que os outros pararam. Tinha tomado uísque a mais. Depois da valsa, ele saiu do salão para fumar um cigarro, eu o observei bem,  os ombros um pouco caídos. Debruçou-se no parapeito e ficou olhando as roseiras. A menção do seu nome foi mínima, ele que morria de trabalhar ficando até tarde no escritório, para dar-lhes todo o luxo, carros, faculdade particular, e quem ganhara os elogios, os holofotes, merecido claro, mas ele merecia mais.
Assim decidiu que a partir daquele dia, iria dedicar mais tempo à família, e naquela mesma segunda- feira fechou mais cedo o escritório de importação e exportação e veio com seu carro pela avenida, sentindo-se mais leve, a brisa do ar estava gelada, choveu, as luzes da cidade refletiam as cores vivas nas poças do asfalto repetindo cenas de filmes. Estacionou na garagem. A luz do quarto estava acesa. “Será uma surpresa e tanto para Marina!  Ela vive me cobrando, que eu trabalhos demais, que isso e aquilo...
Subiu os últimos degraus assoviando a música tocada em seu casamento.  “Can I Have This Dance”. Lembrava bem.Marina estava linda de branco. Foi à maior festa dos últimos tempos.

          Empurrou levemente a porta. Só as luzes do abajur. Um vinho aberto pela metade, duas taças.
         Na cama um casal inusitado:

          Marina e patrícia beijavam-se loucamente. Ele nem sequer foi notado.

          Fecha a porta.

          Entra no escritório e dá um tiro na cabeça.

          Isso foi tudo.