quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Codi


                                                         Do site futebol de rua(desenho)



                                          
                                             Codi


          O ano era 1980. Íamos disputar a pelada mais importante da vida.  De um lado os meninos da rua de baixo, com camisa, do outro, o time do galo assado, sem camisas.

           Tínhamos nos preparado toda a semana.  Codi tinha roubado todas as meias das meninas da beira do rio, o que fez elas ficarem todas alvoroçadas e não era para menos, pois era sexta feira e elas tinham de se prepararem  para os seus clientes.

          A bola ficou grande e leve.

          Codi recebeu esse nome quando decretaram no Brasil o AI-5.  Foi em setenta e cinco. Creio que o pai dele foi o primeiro a sumir. Talvez por ser dono de banca de revista, a única da cidade, por ler muito, sabia das coisas, não parava de falar dos milicos e um dia o levaram.

          Gostava quando  ele emprestava para nós revistinhas de mulheres peladas. Levávamos lá para a pedra grande, na curva  do rio e enquanto olhávamos as figuras das mulheres em diversas posições, tocávamos punhetas memoráveis.

          Lembro que codi sempre tinha as figurinhas que completavam o álbum.  Os meus por mais que eu comprasse ficava faltando algumas. Batíamos o bafo. Era ali que eu ganhava as que faltavam. Eu era bom naquilo. Batia sobre a figurinha com a mão em forma de concha. Não tinha erro.

          E aí Codi trouxe a bola. Ficamos a manhã inteira treinando faltas, pênaltis, chutes, pois nunca se sabe quando vai precisar.  O time do galo assado era famoso na retranca. E tinha um beque e um Center   forward muito bom. Nos achávamos  melhores do que eles. A gente já tinha TV preto e branco em casa, eu mesmo tinha visto, Pelé, garrincha e todos os canarinhos jogarem juntos. Meu pai tinha comprado um vidro que colocava em frente a TV e ficava um pouco colorida. Só um pouco. Por eu ter visto ao vivo e a cores pensava saber o gingado deles.

          O time do galo assado não tinha visto. Eles tinham ouvido o Brasil ser campeão em setenta nos radinhos. Não tinham televisão. Os locutores falavam tão rápido que de certo eles não aprenderam o gingado e seria presa fácil.

          Codi ensinava as dicas para mim. Bate assim de” trivela” na bola com esses três dedos de fora do pé que ela pega o maior efeito e engana os goleiros. Agora dá de bicuda. A bola não vai muito certo mais engana os caras. Agora se quiser bater colocado bate com o peito do pé.

          Eu sabia que Codi tinha aquela cara amarrada devido ao pai ter desaparecido. E a partir daí Codi ficou largado, vivia na rua e sabia de muita coisa ruim e por isso todos os outros o respeitava.
Um dia ele desapareceu da pelada. Todo mundo ficou procurando. Só fomos achar ele meia hora depois. Ele estava atrás de uma jumenta com as calças abaixadas. Quando a gente chegou ele saiu de dentro dela, e mijou na grama seca.

          -É para não pegar doença, disse.
          -Alguém quer?
Vareta quis.
          -Como faz, perguntou.
  Codi ensinou. Ele dava verdadeiras aulas.     
           -Sobe nessa pedra, cospe em cima e coloca. Depois é só mexer. Quando sentir uma coisa estranha é que gozou.
Vareta terminou e  perguntou:
          -Mais alguém?

          Ninguém quis. Aí ele deu uma tapa na anca da jumenta que saiu em disparada.

          Fomos todos tomar banho no rio.

          No outro dia a  pelada ia começar. O nosso Goal Keeper era” vareta”,  Centre Back, Pé de anjo,  Central Midfielder  eu,  e o Center  forward,  Codi.

          A Pelada estava bem jogada bola lá e cá. O Center forward deles deu uma bicuda que a bola veio numa velocidade e força tal que pegou no meio da minha cara. Meu nariz até zuniu de dor. Não fiz de rogado. Quando ela ia descendo eu fiz que ia chutar e dei um balãozinho por cima do back dele e Codi com sangue nos olhos, pegou a bola descendo com o peito do pé numa força tão grande que passou no meio dos braços do keeper deles e foi bater  no canto onde a coruja dorme. Saímos gritando gol gol e gol. Estava no meio do segundo tempo quando  dona Zilda mãe de Codi chegou na beirada do campo  gritando:

          - Vem filho, acharam seu pai!

          Eu tirei  o suor que ardia meu olho direito com o dedo e joguei no chão. Arrumei o calção e sai correndo atrás deles também. Foi a primeira vez que vi Codi chorar. Ele corria  arrancando seu cabelos sem acreditar.

          Assim chegamos todos a beira do rio. Um cara tinha cavado com uma pá uma vala e dentro dela restos do que fora uma pessoa, um crânio que parecia sorrir, ossos com resto de carne apodrecida e roupas puídas. Tinha muitos urubus em volta. Mesmo assim dona Zilda caiu de joelhos, agradecendo a Deus:

           -Obrigado senhor! Obrigado! Agora podemos enterrá-lo e dormirmos em paz.

          Só depois de adulto eu entendi aquilo.