quinta-feira, 22 de março de 2012

Recém formado

              
 Dentista, formado naquele ano, ainda cheirava ao baile de formatura.
 Sentou-se em frente ao computador e lia os últimos artigos sobre sua área, enquanto olhava demoradamente para sua mão esquerda, onde brilhava um lindo anel de formatura, presente da mãe, dado com muito sacrifício, já que era do lar e o marido, um funcionário publico, mal remunerado.
               Numa placa de bronze, preta, seu nome desenhado: Renato Orgulhou-se deles, coitados! Fizeram de tudo para forma-lo.
               Seu consultório foi montado com o que tinha de mais moderno, graças à confiança dispensada pelos gerentes.
A sala de espera era pequena, mas confortável: Tinha poltronas, revestidas em couro branco e nas paredes quadros de artistas de primeira linha e as luzes ficavam pela metade, dando uma aparência de conforto extraordinário. O som era ambiente.
            Ele olhou pelo circuito interno e viu a secretaria lendo uma revista de modas. Ele era moreno, simpático, vestia-se de branco, contrastando com seus cabelos cortados rentes e escuro. Levantou-se, e andou em direção da janela olhando pela fresta da persiana azul. Via carros passarem em alta velocidade e pessoas andando ligeiras para seus serviços. O consultório era bem localizado e ficava num dos prédios principais da cidadezinha. Repentinamente a secretaria entrou:
        -Um paciente doutor! Mando-o entrar? Esfregava as mãos de contente pelo primeiro.
Ele sorrindo pediu um tempo:
         -Calma Luiza! Deixe-me arrumar! Quero ficar com ar de importância. Vou pegar o telefone , fingir que estou numa conversa importante e ai você manda-o entrar. E assim fico bem na fotografia ok?
         Ela acenou positivamente e saiu. Ele leu uns segundos ainda, e fechou  a pagina  deixando no monitor, figuras de sorrisos brilhantes, com as frases manjadas embaixo: Antes e depois.
         Encostou os lábios no fone, impostou a voz e falou:
         -Por favor, Luiza, mande-o entrar. Imediatamente pegou o telefone.
Entrou um rapaz vestindo uniforme azul com um rolo de fios nas mãos, recebeu-o com um aperto de mão sem largar o telefone. Mandou-o sentar despediu-se de alguém do outro lado do fio,sem antes deixar entender que falava com o prefeito, e com muita intimidade. Despediu-se agradecendo:
          -Muito obrigado. Estarei ai para tomarmos uma cerveja, um abraço. Desligou. Pediu para que sentasse. Quis começar pela anamnese:

            -Qual seu nome?
            -?...
            -Não se preocupe. Não dói nada.
            -Olhe o crachá doutor! Ai diz Severino mas pode me chamar de Lino.
             -Endereço?
             -Aqui mesmo em Ubá, uai!
             -Por favor, Sr Severino. Logradouro, numero e bairro?
              -Fica no buraco quente sem numero. Não gosto muito desse nome não doutor mas tem que falar a verdade ne?
             -Claro!Trabalho. Faz o que?
             -Faço montagem. Desconfiado com alguma coisa. “Tem que fazer isso?”

-Muito importante para o diagnostico.
-Mas doutor...
-Calma Severino não dói nada!
-Eu só queria dizer... Sem deixar falar.
Apalpou toda a mucosa, os lábios e com os dedos na boca de Severino que subitamente retirou-os.
-Você faz o que mesmo?
-Monto telefone, doutor... e vim para isso mesmo! Montar seu telefone.
Renato caiu do pedestal e corou envergonhado.

Noite de Natal


A rua era calma e aristocrática. Pedrinhas multicores coloriam os passeios á noite. Os pisca-piscas brilhavam ininterruptamente, cores variadas. Véspera de natal. 
Data em que os homens fingem umas generosidades fraternas.
 
Nessa rua de riqueza, num elevado, sobressai-se uma casa, melhor dizendo,um palacete; de vastos jardins no centro, cascatas, águas límpidas, de uma fonte artificial de beleza impar. Na entrada desse palacete, uma porta larga e pesada de madeira de lei, esculpida pelos melhores marceneiros, e que em seus pórticos contrastando, via-se duas câmeras, olhos vivos, vigiando noite e dia.
 
Nos jardins, dois grandes portões de ferro, fechavam-na, e sobre os muros altos, corriam em cima, fios elétricos. Verdadeiras muralhas. “Entristecia-me deveras, aquelas casas, com seus muros altos”, - Reféns do medo.
 
Agora, o portão, abria-se automaticamente, deixando passar lentamente, um possante carro preto. O carro deslizou, velozmente, pelas ruas, furtivo, e sem olhar nos olhos dos transeuntes, esgueirava-se como que fugindo, do medo em cada esquina.
 
O homem liga o ar e levanta os vidros. Não olha a paisagem. Comprime as mãos no volante. Liga o radio e procura uma estação. Pensa nos negócios. “Esta indo de vento em popa”. Não pode relaxar. Só pensa nos lucros. Pega o celular e olhando para os lados e nos retrovisores, perscrutando as esquinas (costume adquirido depois de dois assaltos, saiu incólume, graças a sua esperteza), liga um numero do escritório, seu grande escritório de advocacia, ditando as ordens. Estava preste a ganhar mais uma causa, em que, retiraria uma favela inteira de um terreno, em que provara ser de um grande conglomerado, e que no lugar se construiria não aquele “chiqueiro de casas”, mas um grande hotel cinco estrelas. Sorriu! “Esse ano fora fabuloso”. Olhava agora para a grande favela, em que suas casas, construídas, nos despenhadeiros, equilibravam-se em palafitas de tabuas e restos de ferragens, e que logo, dariam lugar ao mais lindo hotel. Orgulhava-se.
Porem, neste bairro, de casas simples, também mora gente. Excluídos, e certo, a margem da sociedade, lutam de toda maneira para sobreviverem. Neste mesmo bairro, numa casa, das mais simples, acordam uma criança e sua mãe, que se deram ao luxo, de dormirem ate mais tarde, este dia, devida ser véspera de natal. Olhariam as lojas. Sonhariam. Lembraram-se do dia anterior, onde acordaram bem cedo, antes do sol raiar, e sacos nas mãos, rumaram para o lixão, à cata de coisas, sobra dos ricos, concorrendo com os urubus, aos sobejos. Não tiveram sorte. Pegaram uns restos de papelão, outros de jornais velhos, recipientes de plásticos, que seriam vendidos por preços irrisórios. Eram como os urubus, os higienizadores da natureza. Pobres famílias! 
Chegaram à primeira loja. Por detrás de vidros polidos brilhavam o sonho. Havia brinquedos movidos à pilha, controle remoto e todos os produtos importados de ricos países.
 
- Mãe!
 
- Que e?
 
- Escrevi outra carta! Os olhos brilharam.
 
- Pra quem filho?
 
- Pra quem mãe! Pro Papai Noel!
 
- Mas você não se emenda filho! Maneou a cabeça, em desesperança.
 
- Essa vez eu pedi coisa mais simples mãe! Levemente triste.
 
- Esqueci a bicicleta. E coisa grande! Só para os ricos! Apalpando os bolsos.
Hoje a criança estava feliz. Achara um revolver de plástico, igual ao de John Wayne, e com ele no bolso, sacava-o a todo instante, talvez treinando para um duelo fictício. 
-Pedi uma bola de futebol! E de repente saiu correndo com uma bola invisível no pe, deu um drible, parou, mais um, agora tocou a pelota no chão, ajeitou para a esquerda e deu um chute no ar, esperou um momento, acompanhou a trajetória da bola, esticou a cabeça e gritou:Goooooooooooooool!
 
-Menino!
 
-O que mãe?
 
-Para de grito!Não ver que ta chamando a atenção!
 
Os transeuntes fugiam de seu encontro. Não queriam ver a pobreza, tão escancarada em suas vistas. Passavam ao largo, apressados. Alguém, com do dos maltrapilhos, afundou a mão em um dos bolsos, e de longe, jogou uma moeda, das menores, e que o menino começava a correr em sua direção, em catá-la, quando sua mãe gritou:
 
-Não pedimos esmolas! Vivemos sofríveis e verdade, mas vivemos do nosso trabalho. Pegou da mão do menino, e saiu desconcertada. “Não precisamos de esmolas!”.
 
O homem catou a moeda e emendou: Miseráveis e orgulhosos! Era só o que faltava! E saiu pisando duro.
 
Agora o menino já se entretém, olhando outras vitrines.
 
-Mãe!
 
-Anh!
 
-Quem e aquele menino? Apontando o dedo.
 
-O menino Jesus!
 
-Ele e tão bonitinho! Parece meu irmãozinho que morreu! Não e mãe?
 
-E.
 
Silencio.
 
Pensativo.
 
-Ele e filho de quem mãe?
 
-Filho de Deus meu filho! Olhando pro alto.
 
-Que bom ser filho de Deus mãe! Pegando um pedaço de pão velho dos bolsos, e comendo vagarosamente.
 
-Queria ser também.
 
-Mas você e filho! Emocionada. Todos nos!
 
Pensativo. Agora tirando o miolo do pão e jogando aos pombos.
 
-Não sei! Não nos parecemos nada, mãe!
 
Olha-se no espelho. Mira-se demoradamente.

-Ele e tão coradinho! E olhe minhas mãos! Espalma as mãos esqueléticas. 
-Onde posso encontrá-lo mãe? Vagamente. 
-Acho que em qualquer lugar filho! E saíram subindo a rua olhando ora de um lado ora de outro, e o menino corria de encontro aos pombos, que voavam baixo e que de repente, voltavam em circulo atrás dos nacos de pão.
Noutra rua, próximo dali, o homem do carro preto, falava ao celular. Ver-se que se veste de Papai Noel e que tem uma longa barba branca. Vai participar das festas de fim de ano de sua empresa. Grita arrogante: 
-Não quero qualquer bebida! Quero champanhe francês! Vamos comemorar. Foi uma grande vitória! Os mortos de fome têm que sair! Ganhei uma bela bolada! 
Lá fora cai uma chuva fininha. Liga o desembaçador. Para no sinal vermelho. Ato reflexo olha em todas as direções. Um menino bate levemente no vidro e o assusta. São os vendedores de sinal, “meninos de rua”, de todos os tamanhos, ajudando a complementar a renda familiar. Oferece guloseimas. “Como aquele menino se aproximou furtivamente, sem conseguir vê-lo”. Rápido levanta os vidros, e com o dedo acena negativamente. Há uma tensão no ar. Nas mãos do menino, surge uma arma. Com olhos injetados de sangue grita loucamente. 
-O dinheiro tio! 
No olhar do homem, o rancor, a avareza. Comprimem-se todo com ódio e acelera bruscamente. Escutam-se estampidos. Cheiro de pólvora paira no ar. Gritos.  Sinal verde. Todos avançam sem se importar. O carro preto começa uma corrida vertiginosa, queimando o asfalto em derrapagens. Os vidros voam em pedaços estilhaçados. Desliza de um lado para o outro em zig zag indo colidir no parapeito da pista. Com o choque o capo, se levanta, subindo vapores de água fervente. Num átimo, um corpo crivado de bala, peito caído sobre o volante, boca aberta em agonia, inerte. Sirenes agudas cortam a noite quebrando o silencio. O menino arma em punho, mãos vazias, barriga vazia, corre, sumindo na escuridão. Vida vazia. A policia interdita a rua, os paramédicos chegam, e a noticia corre.
No outro quarteirão, o outro menino corre em direção a mãe quase mudo. 
-Mãe! Mataram o Papai Noel, mãe! As lagrimas desciam dos olhos fundos. Agora ele não vai poder atender meu pedido. Tosse. Das narinas descem catarros viscosos. Seu ventre fundo balança-se em soluços. 
-Não filho! Não e assim. Tentando acalma-lo. 
-E sim mãe! Vi agora na televisão. Deram seis tiros nele! Coitado! 
-Agora nem bicicleta nem bola! E talvez para sempre… Ele morreu! Falou resignado. 
-E melhor irmos embora! E saíram apressadamente, pequenos na noite. De vez em quando, uns e outros lhes apontavam os dedos. Não compreendiam. 
-Parados ai! Viraram-se subitamente. 
A rua apinhara-se de gente. Tinham muitos policiais, e todos lhes apontavam armas. 
Eram suspeitos. Pretos e pobres. O retrato falado. O menino também tinha treze anos. Assemelhavam-se 
O menino pensou que era brincadeira e levou as mãos nos bolsos, e como o mocinho dos filmes americanos, sacara sua arma de brinquedo. Pobre menino! Caiu crivado de balas, sem dar um grito. Sua mãe chorava copiosamente. 
-Bandidos! Mataram meu pobre menino! 
-Mãe! Estou segurando as mãos de Deus! Sorri. 
-Não meu filho! Queria dizer uma coisa. 
-O que mãe? 
-Que talvez ele não exista! 
-Não mãe! Agora estou nos braços Dele e Ele sorri para mim! 
“Venham a mim todas as criancinhas” Os sinos dobraram pesadamente doze vezes. Estampidos de fogos são ouvidos ininterruptamente. Feliz Natal! Gritam. 
Ao longe, muito alem, numa manjedoura, nasce o filho de Deus, corado, gordinho, e rodeado de presentes dos reis, enquanto, ali no asfalto, jaz um de seus filhos, magro e maltrapilho. Um inocente.

Contomeuscontos-Literatura-Crônicas: Artigo

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