segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Vermelho no branco




                                               

                                            Vermelho no branco                              



 Adorava o domingo. Achava um dia calmo, ameno, verde e brilhante. Colocou tênis, short de malha preto, fone de ouvidos, as músicas que gostava. Alongou-se demorado na calçada. Olhos atentos na janela. Joga um beijo para o marido. Logo após iniciou a corrida de todos os dias.

O dia branco enfumaçado de neblina. Uma imagem embaçada a sua frente. A igrejinha, a escola, o mercado, os clubes campestres, cercas e pastos verdejantes e o ar puro do campo.

Passos firme, som de cascalho sob os pés, a estrada marrom e reta e livre e alegre. O sangue quente, coração em compassos. O conforto vem  no movimento dos membros, da ginástica. As pernas já não doem, o corpo quente agora assente o prazer.

De vez em quando um gole de água. Mesmo frio o tempo, gotas de suor descem-lhe a fronte.  Calculou uns 10 km. Já é hora de voltar. Foi quando recebeu a carga. Desequilibrou-se e por sorte caiu sobre o gramado. Teve intenção de xingar. Não houve tempo.  A cena escura.

                                                             *
                                    
Computador, mesa com quadros de família em pose, estante, cadeiras, poltrona, escrivão, papéis, carimbos, relógio, piso gasto, vozes longe, risadas, batidas de portas, telefones tocando, sirene, o delegado. Papel na mão.


                                                        Instituto médico legal
                                  Secretaria de segurança pública do estado de ********
                                  Rua*************número*****************


                                                               Conjunção carnal
Protocolo número***/*****
Por solicitação do delegado********da delegacia****cidade******
Examino Carla de Almeida Sobrinho, 23 anos, casada, atleta e professora de academia, residente na rua ****** número *****Informa que na manha desse domingo, do corrente mês, por volta de seis horas mais ou menos, saiu para o Cooper de todos os dias, nas proximidades de sua residência, que foi empurrada para um matagal e violentada.  Ela informa que depois que caiu ao solo, não se lembra de mais nada.
                                                           Ao exame:
Ausência de lesões corporais externas. Ao exame da genitália externa: Compatível com desenvolvimento normal. Presença de secreção espessa esbranquiçada no intróito vaginal (coletada amostra), rupturas himenais antigas, ferida contusa pequena com sangramento discreto na comissura posterior dos lábios. Coletado secreção vaginal.
1.        Se a paciente é virgem? Não.
2.        Se há vestígios de desvirginamento recente? Não
3.        Se há outros vestígios de outras conjunções carnais recentes? Sim.
Cidade data *****
                                        Médico legista CRM **********



“Senhora Carla, a senhora desconfia de alguém?”.

O piso gasto, cerâmica encardida muita gente por ali, anos após anos. O ponteiro de relógio em movimento.

“N Não!” Respondeu.

“Sim! Pense bem, uma pessoa qualquer, um vizinho, que te olha enviesado, algum aluno, algum serviço que contratou recente, qualquer pessoa... nada pode ser descartado”.

Com esse corpão vai ser sempre perseguida! Puta que pariu! Vai ser gostosa assim, lá em casa!
O visinho da frente sempre me olha. Toda mulher sabe quando é desejada! Mas é apenas um estudante

Ela disse:

“Não! Ninguém!”.

“... você costuma sair com essas roupas coladas... assim quase... que mostrando o corpo todo...Sabe como  que é!”.

Mostrando tudo, esse volume! Parece um capô de fusca!

“Nada mais natural! Afinal ela é jovem, esportista e estava se exercitando...”. Disse o marido, afagando-lhe os cabelos.

“Sabe como é... Os homens são canalhas! Não pode ver um corpo bonito... É de sua natureza!”.

Casar com mulher bonita assim é pedir para ser corno!

“Mas detetive, olhar tudo bem, agora violentar! Violentar! Não existe desculpa!”, Gritou o marido.

“Calma! Essas perguntas são de praxe!”.

 “Não! Detetive! Não desconfio de ninguém!”. Grita a mulher. “Quero ir para casa!”.
“Eu sei que é difícil! A senhora passou por um trauma! Mas tente lembrar-se de algo! Qualquer coisa...”

Deu mole! Mulher assim, não pode andar por aí sozinha!

O detetive traz outro catálogo. Fotos e mais fotos eram-lhe mostrada. Não conseguia reconhecer. Todas as fotos de personagens do submundo do crime.

Os homens em volta tinha um ar tenso, como um elástico esticado, quando na presença de uma mulher excitante.

“Não! Não reconheço ninguém!”.

“A mulher não tem culpa, por está vestida de uma forma ou de outra! Isso é um absurdo!”. Diz o marido.

Realmente a mulher era de tirar o fôlego. Pernas torneadas, cabelos sedosos, músculos tesos e divididos.

“Pode não ser, também penso assim, embora chame mais a atenção dos homens em geral! Essas roupas de academia, esses shorts minúsculos...”. 

Muito gostosa!

                                                               *

No psiquiatra uma semana depois.

“Fale o que quiser! Ou não!”

“Acordei com meu marido beijando-me. Ele é um amor. Na manhã amamo-nos demoradamente. Naquele dia ele trouxe café na cama... Ainda disse que o tempo estava ruim para sair... Não lhe dei ouvidos...”

Choro.

“Não se culpe! Nunca se pode desconfiar dessas coisas...”.

Relaxa filha! Com esse corpanzil, tudo isso, até eu...

“Tenho pesadelo todo dia”.

“Conte-me!”.

 “Tudo começa eu perdida, correndo numa rua escura. Escura e tortuosa,  antigas lembranças. Vozes me perseguem. Tento correr mais rápido, mas minhas pernas não ajudam. Droga! Droga! Eu grito. Depois começo a chorar. Vejo um rosto. Aí vem um vazio, uma dor no peito e eu acordo assustada e chorando...”. Soluços.

 “Reconhece a pessoa?”.

“Não!”

“Continue! Solte essa raiva que tem dentro de você...”.

Ela é maravilhosa! Daria tudo para tê-la na cama!  Até aqui sobre o divã...

“Agora não consigo mais correr. Minhas pernas ficam bambas... Não tenho vontade para mais nada. Tenho muito ódio em mim. Ira mesmo”.

“É normal para os traumatizados... Fale-me de vocês dois: marido e mulher”.
“Somos um casal normal, nos amamos...”.

Gostamos de experimentar coisas. Aquela manhã mesmo nós estávamos brincando, ele era um estranho, que entrava em casa, pegava-me a força, batia em mim... Puxava meus cabelos... E por último me violentava.

“Fetiches, conte-me algum?”.

Quem sabe não tem com um psiquiatra!

 Brincamos de médico. Exame ginecológico. Ele calça as luvas, eu deito na maca para o exame, ele coloca lubrificantes nos dedos, me examina detalhadamente, toca no clitóris, nos grandes e pequenos lábios, depois pergunto-lhe se vai me comer, eu digo que meu marido está na sala de espera e ele me come ali mesmo!

“Coisas de casal! Não vejo importância nisso!”.

Continuou pensando:

Outra noite nós estávamos fazendo amor, e a janela de nosso quarto fica de frente para a rua. O vizinho por trás das cortinas.  Aí meu marido sorriu e me pediu: Vai ali à frente, mostra a bunda para quem quiser ver. Eu fui. Andei na frente da janela. Meu marido ficou super excitado. Eu também.

“Somos como espelhos... Não quer mais falar?”.

 Vem me comer... Estou pronta... Bem molhadinha! Eu repetia o que meu marido pedia. Ele cada vez mais excitado.

“Refletimos nossos pensamentos...”.

Agora abre as pernas! Isso! Agora oferece! Como uma mercadoria. Que delícia ele dizia, enquanto gozava. Eu gostava de me mostrar também. Éramos conscientes disso.

“Ontem tentamos, mas não rolou... Eu fico travada...”.

“É assim mesmo! Está em choque!”

“Agora sinto nojo!”.

Um dia nós estávamos nas preliminares e ele viu o vizinho, na janela, por trás da cortina. Então me puxou para a varanda e fizemos sexo ali mesmo. Vimo-lo se masturbando. Gozamos juntos. Os três. Foi muito bom.

Queria perguntar se aquilo era normal, mas não, não teve coragem.

“Isso é normal... Vou passar esse calmante, tente dormir, descansar...”.

“Fico com raiva, pois ele tenta, todo carinhoso, me dá forças... Mas eu estou travada. Não relaxo”.

“Continue...”.

“Um mês depois conseguimos. Foi rápido. Nossas relações doem na alma, faço para agradá-lo”.
                                                               *
O delegado, na mesma semana.

          -Esse livreto... Achamos com o investigado, Veja!


145,00 Energia
32,89 Água
400,00 Aluguel
132,00 Tel
Não esquecer de pagar essas contas.


Uma hora ou outra eles te darão o troco. Mesmo que seja no final. Não existe perdão, somente um esquecimento para ser usado no tempo certo, vindouro.
Nada é melhor do que está num lugar que ninguém te conheça.
O início da história é o engodo. É onde o escritor usa toda a sua artimanha para ludibriar e talvez encantar o leitor. Ele parte de uma frase curta e geral, depois vai desenvolvendo a história a sua maneira, cuidando de sua presa, mantendo-o atento.
Requerer cópia de notificação de multa.
Estacionar em local proibido rua******na altura do número 1023.
O cara vai até a geladeira, pega um doce de goiabada e volta mastigando com a boca aberta. Abertura idiota para um conto.
Tirar a vida de quem sofre, é aliviá-lo do agonia.
Voltar a lê : O pequeno príncipe, observando os detalhes, como o autor criou tal história, o que ele queria mostrar...
Também as viagens de Gúliver: Observar como foi feito cada passagem.
José Lins do Rego,Machado de Assis: Como ele conta a história, se na primeira ou terceira pessoa.
Rubem Fonseca: O que ele pretende com a violência.
Obs.: O pai colecionador de moedas, abandonado pela mulher. Criar perfil físico e psicológico.
A principal dúvida é a sua origem, de onde tirar as imagens.
Quer conhecer uma pessoa? Conheça suas manias.
Nossa pele é como as cores. Ao misturá-las surgem outras. Mais claras ou mais escuras. Branco com negro, mulato. Branco com índio, cafuzo.
O sangue é vermelho. Tipo A,B,AB, e O.
O sentimento é o amor. Amor + amor=Amor
Amor+indiferença=Ódio=Eu
Quando leio uma história, sempre tento mudar o final, do meu modo. Geralmente fica pior.

Comprar pão, manteiga e creolina. Veneno para rato também.
Não esquecer, as contas atrasadas!

Amor é sentimento sublime. Saudade é oca. Indiferença é branco.

Comprar peito de frango e pão de forma. Queijo e mortadela
Ligar para casa final do mês. Não esquecer aniversário da irmã.

A eternidade não existe. Um dia o planeta desaparecerá e o universo não saberá que nós existimos (José Saramago). Prá pensar.
 saiu para correr. Seis em ponto. Calcular o tempo. Cronometrar tudo.
O planejamento é essencial na construção do conto, tanto quanto na de um edifício. Aliás, não acredito em nada sem planejamento.
“Aquele que combate monstros deve tomar cuidado para que ele mesmo não se torne um. E se olhar muito tempo para o abismo, o abismo te encara de volta” (Nietzsche).
O abismo está sempre próximo.
O itinerário é favorável. Longe da cidade e deserto. O tempo está correto. Sexta feira, pouco visibilidade.
É preciso ter um caos dentro de si para dá à luz uma estrela cintilante.
El mundo real es mucho más pequeño que el mundo de La imaginación. Verdade!
Comprar halotano. Copiar a bula. Modo de uso.
“Apenas se deveriam ler os livros que nos picam e que nos mordam. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio para que lê-los? “(Kafka). Verdade.
Quem mora em metrópoles sonho com lugares onde possa pisar  na terra ou areia, encher a cara de álcool, fugir da realidade e olhar o horizonte aberto.
Quem mora na roça sonha com a metrópole, com o movimento com arranha céus.
Hoje matei um frango. Fui frio, tirei algumas penas e cortei o pescoço. O sangue jorrou longe. A morte quando chega à carne vibra em último abalo muscular e sai algo invisível. Sobra o corpo. Se ficar com dó demora a morrer. Embora eu não tenha ficado com dó demorou muito.
Sabemos pouco de Deus ou quase nada. Mas o que ele criou é grandioso. Agora o homem é uma obscenidade.
Quando te disserem que vais ser feliz é uma farsa. Quando em troca de dinheiro te prometem o paraíso é farsa.
O sexo é físico o amor é emocional.
O homem precisa tirar a máscara que criou com a hipocrisia, para mostrar seu verdadeiro rosto.


Uma parafernália de frases soltas e sem nexo. Não me diz nada!


                                                                   *


Duas semanas depois, pela manha:

        - Ele é enfermeiro na santa casa... Grampeamos seu telefone, em conversa com um mecânico. Ouça!

“Trocar, é isso...Embreagem...agora tô enrolado... hã hã  a embreagem ... o volante também...estragou também...a marcha engastaiou...fudeu tudo...é foda né... Pode trocar?”

“Sim Sim pode”.

“E essa sujeira, parece que carregou porco?”

“hã hã lava tudo também. Lavagem completa...Certo. Pago a diferença”. Risada. Algo inaudível.

 “Não! Gargalhada. Coisa minha! Fica esperto. Não se mete!”
“Tem até uma calcinha aqui no chão do carro. Gargalhada. Vou guardá-la aqui!”

 “Não! Minha noiva pode descobrir! Queima ou joga fora falou! Queima! Dá um sumiço nela!”


         -Não quero ouvir mais...

         -É necessário! Apreendemos o carro dele. Tinha um vidro de Halotano pela metade...  Lenços úmidos...

         -E para que serve?

         -Líquido anestésico inalante. Com certeza ele usou para você dormir e ser levada para qualquer lugar com facilidade. Encontramos também...
essa calcinha!

 Sobre a mesa. Preta e transparente.

Seu corpo, esse corpo maravilhoso, ficou por horas a mercê do cara!

       -Não quero ouvir mais nada!
                                                        *

                                        Numa oficina uma hora antes:

Cheiro de óleo, piso escuro, carros capôs abertos, uniformes azuis, risadas, música, ventiladores girando, copos plásticos, sala de TV, revistas sobre a mesa, mãos sujas de graxa, pôster de mulher pelada, exposição de peças, eixos, canos, pneus, baterias, borrachas...

 Finalmente o cara chegou. Atlético, bonito até. Loiro. Cabelo curto. Um playboy. Falando ao telefone, rindo, um bon-vivant. Pensei no amante de Madame Bovary. Levanto-me da poltrona devagar.

Mostro o distintivo com raiva, talvez ciúme...

          -Está preso, você tem o direito a um telefonema para seu advogado. Tem o direito de ficar calado. Repeti isso maquinalmente.

          -Mãos para trás.

O cara ficou pálido. Quando são pegos viram franguinhos.

         -Hei! Que é isso? Qual a acusação?

 Algemo-o. Clic. Empurro-o para a viatura.

        -Na delegacia explico, gritei.

                                                               *

                                                  A noite:

“Senhora Carla nessa sala, tem cinco indivíduos e entre eles o investigado. A senhora vai vê-los de frente através de um vidro. Olhe bem, pois depende do reconhecimento para o cara se tornar réu... E não se preocupe. Eles não vêem a senhora.
Um sinal e a sala ilumina-se.

O vizinho, ele estava ali, mas como? Um cara bonito, jovem, normal... Será? Será?

“Não tenha pressa senhora!”.

“Não! Não reconheço ninguém!”.

“Mas senhora, um deles, temos quase certeza, temos todas as evidências, um deles é o estuprador! Na santa casa onde ele trabalha há vários relatos de pacientes...”

“Não reconheço! Não reconheço! Deixem-me em paz!


                                                               *
Segunda feira, atual:
                                                                        

Em casa. O telefone tocando. Insistente. Uma, duas, três e na quarta atendo.

               -Alô!

               - Carla?

             -Ela mesma! Quem fala, por favor?

 Eu já esperava. Sabia que ele ia ligar.

            -Seu vizinho de frente! Eu liguei para pedir desculpa... Desde que aconteceu aquilo fica remoendo por dentro... Minha cabeça anda quase a explodir! Tenho vertigens!


O que sentiu Românovitch Raskólnikov, depois que matou a velha em Crime e castigo. A consciência.

            -Mas você acha que é assim! Só desculpa e acabou?

           -Eu sei que errei... Mas fui levado pelo desejo... Vocês me enlouqueceram... Desculpa vai? Eu te amo!

Silêncio. Por mais de cinco segundos.

            -Então faz assim! Vem aqui em casa. Quero desculpa de joelhos! Só se for de joelhos...

            -Eu peço...  Eu peço! Mas... E seu marido?

            -Não se preocupe! Ele saiu e só volta amanhã! Foi na imobiliária. Vamos vender a casa. Vamos mudar de cidade, de ares...Estou muita abalada...

Coloca o telefone no gancho. Espera na sala.

Não demora ele entra. Tomou banho.  Está perfumado. Reconheço o cheiro. Joga-se no tapete. De joelhos. Aproximo. Ele a pega-me pela cintura. Afunda o rosto em meu ventre, entre as pernas. Desculpa! Desculpa! Desculpa! Eu não vivo sem você! Eu te amos! A maciez da saia. Sente o volume, a pele macia. Olhos fechados.

Se ela aceitar, vamos ser amantes, gozaremos uma vida prazerosa juntos, ela tão gostosa... Hum! Que cheiro saboroso emana dela... Linda! Linda!

 Afago seus cabelos. Crespos. Ele relaxa. Suspira aliviado.

Um estampido. Um tiro só. Um buraco.
No centro da testa. Empurro-o com nojo. 
 Um esguicho vermelho no tapete branco.

Está desculpado!

E espera, absorta.






Vermelho no branco




                                               

                                            Vermelho no branco                              



 Adorava o domingo. Achava um dia calmo, ameno, verde e brilhante. Colocou tênis, short de malha preto, fone de ouvidos, as músicas que gostava. Alongou-se demorado na calçada. Olhos atentos na janela. Joga um beijo para o marido. Logo após iniciou a corrida de todos os dias.

O dia branco enfumaçado de neblina. Uma imagem embaçada a sua frente. A igrejinha, a escola, o mercado, os clubes campestres, cercas e pastos verdejantes e o ar puro do campo.

Passos firme, som de cascalho sob os pés, a estrada marrom e reta e livre e alegre. O sangue quente, coração em compassos. O conforto vem  no movimento dos membros, da ginástica. As pernas já não doem, o corpo quente agora assente o prazer.

De vez em quando um gole de água. Mesmo frio o tempo, gotas de suor descem-lhe a fronte.  Calculou uns 10 km. Já é hora de voltar. Foi quando recebeu a carga. Desequilibrou-se e por sorte caiu sobre o gramado. Teve intenção de xingar. Não houve tempo.  A cena escura.

                                                             *
                                    
Computador, mesa com quadros de família em pose, estante, cadeiras, poltrona, escrivão, papéis, carimbos, relógio, piso gasto, vozes longe, risadas, batidas de portas, telefones tocando, sirene, o delegado. Papel na mão.


                                                        Instituto médico legal
                                  Secretaria de segurança pública do estado de ********
                                  Rua*************número*****************


                                                               Conjunção carnal
Protocolo número***/*****
Por solicitação do delegado********da delegacia****cidade******
Examino Carla de Almeida Sobrinho, 23 anos, casada, atleta e professora de academia, residente na rua ****** número *****Informa que na manha desse domingo, do corrente mês, por volta de seis horas mais ou menos, saiu para o Cooper de todos os dias, nas proximidades de sua residência, que foi empurrada para um matagal e violentada.  Ela informa que depois que caiu ao solo, não se lembra de mais nada.
                                                           Ao exame:
Ausência de lesões corporais externas. Ao exame da genitália externa: Compatível com desenvolvimento normal. Presença de secreção espessa esbranquiçada no intróito vaginal (coletada amostra), rupturas himenais antigas, ferida contusa pequena com sangramento discreto na comissura posterior dos lábios. Coletado secreção vaginal.
1.        Se a paciente é virgem? Não.
2.        Se há vestígios de desvirginamento recente? Não
3.        Se há outros vestígios de outras conjunções carnais recentes? Sim.
Cidade data *****
                                        Médico legista CRM **********



“Senhora Carla, a senhora desconfia de alguém?”.

O piso gasto, cerâmica encardida muita gente por ali, anos após anos. O ponteiro de relógio em movimento.

“N Não!” Respondeu.

“Sim! Pense bem, uma pessoa qualquer, um vizinho, que te olha enviesado, algum aluno, algum serviço que contratou recente, qualquer pessoa... nada pode ser descartado”.

Com esse corpão vai ser sempre perseguida! Puta que pariu! Vai ser gostosa assim, lá em casa!
O visinho da frente sempre me olha. Toda mulher sabe quando é desejada! Mas é apenas um estudante

Ela disse:

“Não! Ninguém!”.

“... você costuma sair com essas roupas coladas... assim quase... que mostrando o corpo todo...Sabe como  que é!”.

Mostrando tudo, esse volume! Parece um capô de fusca!

“Nada mais natural! Afinal ela é jovem, esportista e estava se exercitando...”. Disse o marido, afagando-lhe os cabelos.

“Sabe como é... Os homens são canalhas! Não pode ver um corpo bonito... É de sua natureza!”.

Casar com mulher bonita assim é pedir para ser corno!

“Mas detetive, olhar tudo bem, agora violentar! Violentar! Não existe desculpa!”, Gritou o marido.

“Calma! Essas perguntas são de praxe!”.

 “Não! Detetive! Não desconfio de ninguém!”. Grita a mulher. “Quero ir para casa!”.
“Eu sei que é difícil! A senhora passou por um trauma! Mas tente lembrar-se de algo! Qualquer coisa...”

Deu mole! Mulher assim, não pode andar por aí sozinha!

O detetive traz outro catálogo. Fotos e mais fotos eram-lhe mostrada. Não conseguia reconhecer. Todas as fotos de personagens do submundo do crime.

Os homens em volta tinha um ar tenso, como um elástico esticado, quando na presença de uma mulher excitante.

“Não! Não reconheço ninguém!”.

“A mulher não tem culpa, por está vestida de uma forma ou de outra! Isso é um absurdo!”. Diz o marido.

Realmente a mulher era de tirar o fôlego. Pernas torneadas, cabelos sedosos, músculos tesos e divididos.

“Pode não ser, também penso assim, embora chame mais a atenção dos homens em geral! Essas roupas de academia, esses shorts minúsculos...”. 

Muito gostosa!

                                                               *

No psiquiatra uma semana depois.

“Fale o que quiser! Ou não!”

“Acordei com meu marido beijando-me. Ele é um amor. Na manhã amamo-nos demoradamente. Naquele dia ele trouxe café na cama... Ainda disse que o tempo estava ruim para sair... Não lhe dei ouvidos...”

Choro.

“Não se culpe! Nunca se pode desconfiar dessas coisas...”.

Relaxa filha! Com esse corpanzil, tudo isso, até eu...

“Tenho pesadelo todo dia”.

“Conte-me!”.

 “Tudo começa eu perdida, correndo numa rua escura. Escura e tortuosa,  antigas lembranças. Vozes me perseguem. Tento correr mais rápido, mas minhas pernas não ajudam. Droga! Droga! Eu grito. Depois começo a chorar. Vejo um rosto. Aí vem um vazio, uma dor no peito e eu acordo assustada e chorando...”. Soluços.

 “Reconhece a pessoa?”.

“Não!”

“Continue! Solte essa raiva que tem dentro de você...”.

Ela é maravilhosa! Daria tudo para tê-la na cama!  Até aqui sobre o divã...

“Agora não consigo mais correr. Minhas pernas ficam bambas... Não tenho vontade para mais nada. Tenho muito ódio em mim. Ira mesmo”.

“É normal para os traumatizados... Fale-me de vocês dois: marido e mulher”.
“Somos um casal normal, nos amamos...”.

Gostamos de experimentar coisas. Aquela manhã mesmo nós estávamos brincando, ele era um estranho, que entrava em casa, pegava-me a força, batia em mim... Puxava meus cabelos... E por último me violentava.

“Fetiches, conte-me algum?”.

Quem sabe não tem com um psiquiatra!

 Brincamos de médico. Exame ginecológico. Ele calça as luvas, eu deito na maca para o exame, ele coloca lubrificantes nos dedos, me examina detalhadamente, toca no clitóris, nos grandes e pequenos lábios, depois pergunto-lhe se vai me comer, eu digo que meu marido está na sala de espera e ele me come ali mesmo!

“Coisas de casal! Não vejo importância nisso!”.

Continuou pensando:

Outra noite nós estávamos fazendo amor, e a janela de nosso quarto fica de frente para a rua. O vizinho por trás das cortinas.  Aí meu marido sorriu e me pediu: Vai ali à frente, mostra a bunda para quem quiser ver. Eu fui. Andei na frente da janela. Meu marido ficou super excitado. Eu também.

“Somos como espelhos... Não quer mais falar?”.

 Vem me comer... Estou pronta... Bem molhadinha! Eu repetia o que meu marido pedia. Ele cada vez mais excitado.

“Refletimos nossos pensamentos...”.

Agora abre as pernas! Isso! Agora oferece! Como uma mercadoria. Que delícia ele dizia, enquanto gozava. Eu gostava de me mostrar também. Éramos conscientes disso.

“Ontem tentamos, mas não rolou... Eu fico travada...”.

“É assim mesmo! Está em choque!”

“Agora sinto nojo!”.

Um dia nós estávamos nas preliminares e ele viu o vizinho, na janela, por trás da cortina. Então me puxou para a varanda e fizemos sexo ali mesmo. Vimo-lo se masturbando. Gozamos juntos. Os três. Foi muito bom.

Queria perguntar se aquilo era normal, mas não, não teve coragem.

“Isso é normal... Vou passar esse calmante, tente dormir, descansar...”.

“Fico com raiva, pois ele tenta, todo carinhoso, me dá forças... Mas eu estou travada. Não relaxo”.

“Continue...”.

“Um mês depois conseguimos. Foi rápido. Nossas relações doem na alma, faço para agradá-lo”.
                                                               *
O delegado, na mesma semana.

          -Esse livreto... Achamos com o investigado, Veja!


145,00 Energia
32,89 Água
400,00 Aluguel
132,00 Tel
Não esquecer de pagar essas contas.


Uma hora ou outra eles te darão o troco. Mesmo que seja no final. Não existe perdão, somente um esquecimento para ser usado no tempo certo, vindouro.
Nada é melhor do que está num lugar que ninguém te conheça.
O início da história é o engodo. É onde o escritor usa toda a sua artimanha para ludibriar e talvez encantar o leitor. Ele parte de uma frase curta e geral, depois vai desenvolvendo a história a sua maneira, cuidando de sua presa, mantendo-o atento.
Requerer cópia de notificação de multa.
Estacionar em local proibido rua******na altura do número 1023.
O cara vai até a geladeira, pega um doce de goiabada e volta mastigando com a boca aberta. Abertura idiota para um conto.
Tirar a vida de quem sofre, é aliviá-lo do agonia.
Voltar a lê : O pequeno príncipe, observando os detalhes, como o autor criou tal história, o que ele queria mostrar...
Também as viagens de Gúliver: Observar como foi feito cada passagem.
José Lins do Rego,Machado de Assis: Como ele conta a história, se na primeira ou terceira pessoa.
Rubem Fonseca: O que ele pretende com a violência.
Obs.: O pai colecionador de moedas, abandonado pela mulher. Criar perfil físico e psicológico.
A principal dúvida é a sua origem, de onde tirar as imagens.
Quer conhecer uma pessoa? Conheça suas manias.
Nossa pele é como as cores. Ao misturá-las surgem outras. Mais claras ou mais escuras. Branco com negro, mulato. Branco com índio, cafuzo.
O sangue é vermelho. Tipo A,B,AB, e O.
O sentimento é o amor. Amor + amor=Amor
Amor+indiferença=Ódio=Eu
Quando leio uma história, sempre tento mudar o final, do meu modo. Geralmente fica pior.

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Não esquecer, as contas atrasadas!

Amor é sentimento sublime. Saudade é oca. Indiferença é branco.

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A eternidade não existe. Um dia o planeta desaparecerá e o universo não saberá que nós existimos (José Saramago). Prá pensar.
 saiu para correr. Seis em ponto. Calcular o tempo. Cronometrar tudo.
O planejamento é essencial na construção do conto, tanto quanto na de um edifício. Aliás, não acredito em nada sem planejamento.
“Aquele que combate monstros deve tomar cuidado para que ele mesmo não se torne um. E se olhar muito tempo para o abismo, o abismo te encara de volta” (Nietzsche).
O abismo está sempre próximo.
O itinerário é favorável. Longe da cidade e deserto. O tempo está correto. Sexta feira, pouco visibilidade.
É preciso ter um caos dentro de si para dá à luz uma estrela cintilante.
El mundo real es mucho más pequeño que el mundo de La imaginación. Verdade!
Comprar halotano. Copiar a bula. Modo de uso.
“Apenas se deveriam ler os livros que nos picam e que nos mordam. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio para que lê-los? “(Kafka). Verdade.
Quem mora em metrópoles sonho com lugares onde possa pisar  na terra ou areia, encher a cara de álcool, fugir da realidade e olhar o horizonte aberto.
Quem mora na roça sonha com a metrópole, com o movimento com arranha céus.
Hoje matei um frango. Fui frio, tirei algumas penas e cortei o pescoço. O sangue jorrou longe. A morte quando chega à carne vibra em último abalo muscular e sai algo invisível. Sobra o corpo. Se ficar com dó demora a morrer. Embora eu não tenha ficado com dó demorou muito.
Sabemos pouco de Deus ou quase nada. Mas o que ele criou é grandioso. Agora o homem é uma obscenidade.
Quando te disserem que vais ser feliz é uma farsa. Quando em troca de dinheiro te prometem o paraíso é farsa.
O sexo é físico o amor é emocional.
O homem precisa tirar a máscara que criou com a hipocrisia, para mostrar seu verdadeiro rosto.


Uma parafernália de frases soltas e sem nexo. Não me diz nada!


                                                                   *


Duas semanas depois, pela manha:

        - Ele é enfermeiro na santa casa... Grampeamos seu telefone, em conversa com um mecânico. Ouça!

“Trocar, é isso...Embreagem...agora tô enrolado... hã hã  a embreagem ... o volante também...estragou também...a marcha engastaiou...fudeu tudo...é foda né... Pode trocar?”

“Sim Sim pode”.

“E essa sujeira, parece que carregou porco?”

“hã hã lava tudo também. Lavagem completa...Certo. Pago a diferença”. Risada. Algo inaudível.

 “Não! Gargalhada. Coisa minha! Fica esperto. Não se mete!”
“Tem até uma calcinha aqui no chão do carro. Gargalhada. Vou guardá-la aqui!”

 “Não! Minha noiva pode descobrir! Queima ou joga fora falou! Queima! Dá um sumiço nela!”


         -Não quero ouvir mais...

         -É necessário! Apreendemos o carro dele. Tinha um vidro de Halotano pela metade...  Lenços úmidos...

         -E para que serve?

         -Líquido anestésico inalante. Com certeza ele usou para você dormir e ser levada para qualquer lugar com facilidade. Encontramos também...
essa calcinha!

 Sobre a mesa. Preta e transparente.

Seu corpo, esse corpo maravilhoso, ficou por horas a mercê do cara!

       -Não quero ouvir mais nada!
                                                        *

                                        Numa oficina uma hora antes:

Cheiro de óleo, piso escuro, carros capôs abertos, uniformes azuis, risadas, música, ventiladores girando, copos plásticos, sala de TV, revistas sobre a mesa, mãos sujas de graxa, pôster de mulher pelada, exposição de peças, eixos, canos, pneus, baterias, borrachas...

 Finalmente o cara chegou. Atlético, bonito até. Loiro. Cabelo curto. Um playboy. Falando ao telefone, rindo, um bon-vivant. Pensei no amante de Madame Bovary. Levanto-me da poltrona devagar.

Mostro o distintivo com raiva, talvez ciúme...

          -Está preso, você tem o direito a um telefonema para seu advogado. Tem o direito de ficar calado. Repeti isso maquinalmente.

          -Mãos para trás.

O cara ficou pálido. Quando são pegos viram franguinhos.

         -Hei! Que é isso? Qual a acusação?

 Algemo-o. Clic. Empurro-o para a viatura.

        -Na delegacia explico, gritei.

                                                               *

                                                  A noite:

“Senhora Carla nessa sala, tem cinco indivíduos e entre eles o investigado. A senhora vai vê-los de frente através de um vidro. Olhe bem, pois depende do reconhecimento para o cara se tornar réu... E não se preocupe. Eles não vêem a senhora.
Um sinal e a sala ilumina-se.

O vizinho, ele estava ali, mas como? Um cara bonito, jovem, normal... Será? Será?

“Não tenha pressa senhora!”.

“Não! Não reconheço ninguém!”.

“Mas senhora, um deles, temos quase certeza, temos todas as evidências, um deles é o estuprador! Na santa casa onde ele trabalha há vários relatos de pacientes...”

“Não reconheço! Não reconheço! Deixem-me em paz!


                                                               *
Segunda feira, atual:
                                                                        

Em casa. O telefone tocando. Insistente. Uma, duas, três e na quarta atendo.

               -Alô!

               - Carla?

             -Ela mesma! Quem fala, por favor?

 Eu já esperava. Sabia que ele ia ligar.

            -Seu vizinho de frente! Eu liguei para pedir desculpa... Desde que aconteceu aquilo fica remoendo por dentro... Minha cabeça anda quase a explodir! Tenho vertigens!


O que sentiu Românovitch Raskólnikov, depois que matou a velha em Crime e castigo. A consciência.

            -Mas você acha que é assim! Só desculpa e acabou?

           -Eu sei que errei... Mas fui levado pelo desejo... Vocês me enlouqueceram... Desculpa vai? Eu te amo!

Silêncio. Por mais de cinco segundos.

            -Então faz assim! Vem aqui em casa. Quero desculpa de joelhos! Só se for de joelhos...

            -Eu peço...  Eu peço! Mas... E seu marido?

            -Não se preocupe! Ele saiu e só volta amanhã! Foi na imobiliária. Vamos vender a casa. Vamos mudar de cidade, de ares...Estou muita abalada...

Coloca o telefone no gancho. Espera na sala.

Não demora ele entra. Tomou banho.  Está perfumado. Reconheço o cheiro. Joga-se no tapete. De joelhos. Aproximo. Ele a pega-me pela cintura. Afunda o rosto em meu ventre, entre as pernas. Desculpa! Desculpa! Desculpa! Eu não vivo sem você! Eu te amos! A maciez da saia. Sente o volume, a pele macia. Olhos fechados.

Se ela aceitar, vamos ser amantes, gozaremos uma vida prazerosa juntos, ela tão gostosa... Hum! Que cheiro saboroso emana dela... Linda! Linda!

 Afago seus cabelos. Crespos. Ele relaxa. Suspira aliviado.

Um estampido. Um tiro só. Um buraco.
No centro da testa. Empurro-o com nojo. 
 Um esguicho vermelho no tapete branco.

Está desculpado!

E espera, absorta.