quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Sobre a questão das leis






Em geral as nossas leis não são conhecidas, senão que constituem um segredo do pequeno grupo de aristocratas que nos governa. Embora estejamos convencidos de que estas antigas leis são cumpridas com exatidão é extremamente mortificante ver-se regidos por leis que não se conhecem. Não penso aqui nas diversas possibilidades de interpretações nem nas desvantagens que se derivam de que apenas algumas pessoas, e não todo o povo possa participar da interpretação.
Talvez estas desvantagens não sejam tão grandes. As leis são tão antigas que os séculos contribuíram para a sua interpretação e esta interpretação já se tornou lei também, mas as liberdades possíveis a respeito da interpretação, mesmo que ainda subsistam, acham-se muitos restringidos. Além do mais a nobreza não tem evidentemente nenhum motivo para influir na interpretação por seu interesse pessoal em nosso prejuízo, já que as leis foram estabelecidas desde as suas origens por ela mesma; a qual se acha fora da lei, que, precisamente por isso, parece ter-se posto exclusivamente em suas mãos. Isto, naturalmente, encerra uma sabedoria – quem duvida da sabedoria das antigas leis -, mas ao mesmo tempo nos é mortificante, o que provavelmente é inevitável.
Além do mais, estas aparências de leis, apenas podem ser na realidade suspeitada. Segundo a tradição existem e foram confiadas como segredo à nobreza, mas isso não é mais do que uma velha tradição, digna de crédito pela sua antiguidade, pois o caráter dessas leis exige também manter em segredo sua existência. Mas se nós, o povo seguiu atentamente a conduta da nobreza desde os mais remotos tempos, e possuímos anotações de nossos antepassados referentes a isso, e as temos prosseguido conscienciosamente até acreditar discernir nos fatos inumeráveis certas linhas diretrizes que permitem concluir sobre esta ou aquela determinação histórica, e se depois destas deduções finais cuidadosamente peneiradas e ordenadas procuramos adaptarmos de certo modo ao presente e ao futuro tudo aparece então como incerto e talvez como simples jogo de inteligência, pois talvez essas leis que aqui procuramos decifrar não existam. Há um pequeno partido que sustenta realmente esta opinião e que procura provar que quando uma lei existe apenas pode rezar: o que a nobreza faz é a lei. Esse partido vê apenas atos arbitrários na atuação da nobreza e rechaça a tradição popular, a qual, seguindo o seu parecer, apenas comporta benefícios casuais e insignificantes, provocando em troca grave e danos, ao dar ao povo uma segurança falsa, enganosa e superficial com respeito aos acontecimentos do futuro. Não pode negar-se este dano, mas a maioria esmagadora de nosso povo vê sua razão de ser no fato de que a tradição não é nem mesmo ainda suficiente, que, portanto há ainda muito que investigar nela e que, sem dúvida, seu material, por enorme que pareça, é ainda demasiado pequeno, pelo que terão que transcorrer séculos antes que se revele como suficiente.
O obscuro nessa visão aos olhos do presente apenas está iluminado pela fé de que virá o tempo em que a tradição e sua investigação conseqüente ressurgirão de certo modo para por ponto final, que tudo será aclarado, que a lei apenas pertencerá ao povo e a nobreza terá desaparecido. Isto não é dito por ninguém e de modo algum com ódio da nobreza. Melhor, devemos odiar-nos a nós mesmos por não sermos dignos ainda de ter lei. E por isso, esse partido, na realidade tão atraente sob certo ponto de vista e que não acredita, em verdade, em lei alguma, não aumentou as suas fileiras, e isso porque ele também reconhece a nobreza e o direito de sua existência. Em realidade, isso apenas pode ser expresso com uma espécie de contradição: um partido que, junto à crença nas leis, repudiasse a nobreza, teria imediatamente a todo o povo a seu lado, mas um partido semelhante não pode surgir porque ninguém se atreve a repudiar a nobreza. Sobre o fio desse cutelo vivemos. Um escritor resumiu isso certa vez da seguinte maneira: a única lei, visível e isenta de dúvidas, que nos foi imposta, é a nobreza, e desta lei haveríamos de nos privar a nós mesmos?

Franz Kafka


domingo, 4 de agosto de 2013

Decálogo do perfeito contista, de Horácio Quiroga

1- Crê em um mestre. Poe, Maupassant, Kipling, Tchekov, - Como em Deus. 

2- Crê que tua arte é um cume inacessível. Não sonhes em alcançá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguirás sem ao menos perceber. 

3- Resiste o quando puderes à imitação, mas imite, se a demanda for demasiado forte, mas que nenhuma outra coisa, o desenvolvimento da personalidade requer muita paciência. 

4- Tem fé cega não em tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como à tua namorada, de todo coração.

 5- Não comeces a escrever sem saber desde a primeira linha aonde queres chegar. Em um conto bem feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância que as três últimas. 

 6- Se quiseres expressar com exatidão essa circunstância – “Desde o rio soprava o vento frio”, não há na língua humana, mais palavras que as apontadas para expressá-la. Uma vez dono de tuas palavras, não te preocupes em observar se apresentam consonância ou dissonância entre si. 

7- Não adjetives sem necessidade. Inúteis serão quantos apêndices coloridos aderires a um substantivo fraco. Se encontrares o perfeito, somente ele terá uma cor incomparável. Mas é preciso encontrá-lo.

 8- Pega teus personagens pela mão e conduza-os firmemente até o fim, sem ver nada além do caminho que traçaste para ele. Não te distraias vendo o que a eles não importa ver. Não abuses do leitor. Um conto é um romance do qual retiraram as aparas. Tenha isso como uma verdade absoluta, ainda que não o seja.

 9- Não escrevas sob domínio da emoção. Deixe-a morrer e evoque-a em seguida. Se fores então capaz de revivê-la tal qual a sentiste, terás alcançado na arte a metade do caminho. 

10- Não penses em teus amigos ao escrever, nem na impressão que causará tua história. Escreva como se teu relato não interessasse a mais ninguém senão ao pequeno mundo de teus personagens, dos quais poderias ter sido um. Não há outro modo de dar vida ao conto.

domingo, 28 de julho de 2013

A fita


Foto do site: http://maquinadecinema.blogspot.com.br/2013/05/lanternas-carvao-de-antigos-projetores.html





Apaga-se a luz.

As roldanas giram.

Semelhante ao relógio ou ao som de um trem.

A imagem atravessa as lentes

E se agigantam na tela branca

A imensidão aparece como num sonho,

Cheiro de pipocas e balas,

Meu coração quase pára de supetão

E a máquina vai engolindo a fita

E junto vai minha alma, e no escuro

Ávido, busco tua mão. Fria e úmida.

Beijo-te com sofreguidão de mocinho,

Que na fita, bem no fim,

Morrerá por amor.

E assim, vamos embora calados,

Com essa realidade infeliz,

De coisas perdidas.



sábado, 27 de julho de 2013

Odisséia







Liberdade! Liberdade! Estrada e caminhada.

Que os percalços apareçam,

Nessa grande aventura

Com início e fim

Sem medo de ordem ou de tempo,

O tempo a contento, cata vento ao vento,

Nesta nossa vida, irreal e virtual,

Outra era outra dimensão,

Que emane o prazer, a alegria,

A felicidade camuflada em orgias,

Nesta odisséia avassaladora,

Que é a vida.



A luta









Onde andas mulher? Aquela exata.

Aquele ser feminino, carinhoso,

Sem musculatura potente,

De carnes tenras,

Seus direitos atearam claro,

Mas,

Queremos tua ancestral forma de amar;

Estamos perdidos nesse orbe

Ora pro nóbis,

Cercam-nos os espinhos,

Cerca viva dos sentimentos,

Ambos estaremos perdidos

Se continuarmos nessa luta,

Decadente pugna,

Que nos levará a lugar algum

Porque nessa luta pela labuta

Perdemos nossa essência:

Tu mulher, mãe e eterna amante,

A puta,

Tu homem e protetor da prole, o macho,

Acorda! Se não restará nenhum amante.

Flores na relva








O beija flor beija,

Roubando da flor veja,

O néctar.

E esta, o aroma empresta,

A selva.

E enfim murcha,

Cai na relva.

Colorindo-a,

Como gotas de sangue sobre a neve,

Ou estrelas na noite densa.

E o beija flor voa

tenso

Vai e voa

De flor em flor.



sexta-feira, 28 de junho de 2013

O afilhado do diabo





Sente-se, por favor. Aceita um café? Não. O delegado sorveu de um gole a xícara branca com café preto. Olhou pela janela o sol quente e o vento balançar as folhas do coqueiro. O escrivão colocou papel na máquina Olivetti ajeitou as fitas e ficou de prontidão. Pode começar.
Não me canso de falar seu doutor. A verdade é uma só. O ponto de vista é que muda. Nesse sertão esquecido por Deus já vi de um tudo moço. Vi gente morrer de sede e de fome de morte matada ou morrida.  Um desassossego. Assombrações já não me metem medo. Sou um dos filhos mais novos, uma ruma, são treze ao todos do velho Amâncio, conhecido daqui, antigo morador do sítio “Doze porteiras”, sítio este, apanhado de finado Turíbio.
Escreva aí: Filho mais novo do Sr Amâncio de Souza Silva de nome Manuel de Souza Silva vulgo “Mané Branco”. O estalar das teclas era escutado longe. De hora em hora um jumento relinchava.
Pois!  O mesmo Turíbio que não aceitava ser coiteiro do cangaço. Era brabo? Vixe Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! Uma caninana! Mas com Lampião o buraco é mais embaixo.  E o cangaço é mais forte de que o governo. Sempre foi.  E rouba menos. E o que roubava distribuía pros pobres, num sabe?  Pois então! Até um filho do velho que participou da revolução de trinta...  O que mancava da perna esquerda? O próprio senhor.  Levou um tiro, lá nele bem acima do joelho.  Andou com Prestes. Eu dizia que era melhor ficar do lado do cangaço num sabe, mas ele não, um teimoso, cabeça dura dos diabos.  Dizia que nunca gostou de comunistas e que um dia venderia tudo e ia embora. Não foi. Bateu as botas e está enterrado aqui, no cemitério de São Judas Tadeu, junto com a mulher, uma santa que Deus a tenha. Sei disso pelos outros daqui. Não vi. 
Meu pai apanhou o sítio do filho. Foi logo que o velho Turíbio se foi.  
Escreva aí: Profissão agricultor. As teclas estalaram. Puxou para o início da página. Um galo cantou no terreiro.
A primeira coisa que o filho fez, bem antes de enterrar o velho, foi vender para o primeiro que aparecesse. E esse um foi meu pai.  Dizem que saiu uma bagatela, coisa de tostão. Ninguém queria possuir. Tudo medo de lampião.
Depois eu vi com esses olhos que a terra há de comer, muitas vezes Lampião chegar aqui, baixar acampamento e ficar descansando. Diz que ele me pegava no colo, bulia comigo ate fiz um dia porqueira nas calças dele.
Escreva aí: Afilhado de Lampião. Tomou outra xícara de café.
O que ele pedia era de comer prá ele e seu bando e depois uma rede dessas de casal armada debaixo dos juazeiros. Bem ali defronte a casa grande.  Quando tava aquela quentura dos diabos, sem o vento nordeste assoviar nos angicos, ele ia lá prá baixo do pé de oiticica onde ficava um areal bom para se pisar descalço. Ficava assim pensando na vida, esfriava a cabeça, os pés. As rolinhas catando ali perto suas pedrinhas e cantando fogo pagou, fogo pagou, fogo pagou. Uma boniteza só. Essa cantoria delas mais as cigarras cantando mais a sombra fresca dava uma moleza, um sono bom, e eles dormiam de roncar. Só um capanga ficava de olho em pé que ele não era besta. Tinha muitos inimigos. E os inimigos não dormem num é?
Então seu doutor, era um sítio ajeitadinho, precisava vê. Ficavam as margens do açude grande. Tinha seu valor. Água naquela região é ouro. Atrás da casa tinha um serrote de pedras negras. Lembro-me como se fosse hoje, quando criança gostava de subir até o topo. Ficava olhando os carcarás voarem e nos períodos secos ver lá de cima, as terras as margens enrugadas e ressequidas. E o povo lá embaixo que nem formiga de miúdo.  
E a naturezas tem suas belezas e suas rudezas moço. Quando chove no sertão, essa terra fica bonita de se ver. As margens das rodagens ficam quaradas de rolinhas e a seriema canta em cima do cupim. A juriti pia bem cedo e os galos de capinas cantam tão alto e bonito que deixa até a gente besta.
Agora quando vem a seca, moço, dá dó de se ver. As aves vão pra longe, a criação morrem a míngua e a terra fica tão esturricada que qualquer vento levanta o pó vermelho. E foi esse ano moço, ano ruim que aconteceu toda desgraça.  Eu tava bem aqui escorado nesse moirão de amansar cavalo, fazendo um cigarrinho de palha, na hora de se pensar, pois ás vezes fica assim deslumbrado com tudo, com o verde, com a chuva, mas a gente sabe que Deus dá e Deus tira num sabe, foi quando deu aquele ventinho pra os lados do curral, e veio estralando madeira, as juremas, os angicos era trec -trec -trec e as rolas voando pra todo canto, misturadas com folha seca pó e papel, e quando chegou bem ali no meio do oitão formou aquele redemoinho de poeira e subiu as nuvens. Diz que o demo passeia ali dentro. E quem quiser ver o bicho, basta só jogar uma pitada de sal. E aí o vento, entorta, girando e torcido que dá medo. E naquele dia joguei moço. Joguei sal.
No início nada. Esperei o cheiro de alcatrão, porque o demo tem cheiro de coisa ruim. Até deu um ventinho assim brando, trazendo o cheiro de longe da aroeira misturado com marmeleiro quando raspamos as cascas para fazer cipó, num sabe. Cipó que usamos para fazer cavalo de pau. Esperei, esperei... O demo não apareceu.
 Eu devia ter na época uns dez anos mais ou menos, aqui não se conta o tempo de tanto trabalhar moço. O vento passou e eu esqueci.
Passou-se oito anos. Um dia bem cedo eu tava trabalhando. Eu já tinha apartado os bezerros, soltado os cabritos, catado gravetos para o fogo e tirado o leite. Aí a porteira rangeu. Eu vinha subindo os degraus do alpendre e meu pai coava o leite com um saco de estopa, e enchia as garrafas para serem vendidas de tardinha no povoado, quando olhamos juntos. Daqui vi que meu pai afastava os mosquitos com o chapéu de couro.
-ô de casa, gritaram.
Nem deu muito tempo de ver quem era os de fora visse!  Vi de supetão assim num sabe, que era um homem de seus quarenta anos mais ou menos carregava uma sanfona, outro com o triangulo na mão, mais outro com a zabumba. E mais uma mulher jeitosinha, com trança comprida. Só deu pra ver isso.
Escreve aí: três homens e uma mulher.
E só vi porque quando eles passaram a porteira da frente, deu um estralo, nisso os cachorros que estavam comendo mosquito debaixo do banco no alpendre, correram latindo. Aqui que eu olhei. Nisso meu pai tirou o chapéu e ralhou com os cachorros. Foi gritando, passa bicho ruim! Sultão! Capeta! Rói osso! Aqui! Aqui! Volta! Nisso os cachorros voltaram com os rabos entre as pernas. Gota serena. Vez!
A valência minha, seu moço, foi meu pai ter pedido que eu fosse lá pras bandas do açude que era pra modo eu arrumar uma cerca, que Paraíba e Pente fino duas vacas disgramadas de ruins, tinha fugido por ali. Foi minha valência. Aí não estava aqui pra contar essa história.
Escreve aí: Saiu antes do acontecido.
Tossiu. Foi à janela. Parece que vai chover. Calorão.
Calorão mesmo seu doutor. Naquele dia também.
Os cachorros deitaram-se debaixo do banco, e continuaram comendo mosquito. Era o que se podia fazer. Medo do chicote de meu pai. Ele não era ruim, não Deus que me livre falar tal coisa.  Ele queria isso sim, era dá inducação a gente num sabe. Isso é que eu pensei quando um dia ele me mandoueu ficar num canto ajoelhado em caroço de milho. Ele me disse que a maior tristeza do mundo é um homem não saber ler. E ele tinha razão, pois na época da debulha do feijão vinha o neto de seu Aparecido e fazia nossa alegria. Ele lia seu doutor aquelas história de príncipes e princesas que a gente ouvia a noite inteira de boca aberta. E tudo escrevido com letrinhas assim que está saindo dessa máquina, num sabe. Outro dia me chamou de sonso porque eu tava olhando as filhas de seu Abertinho tomar banho de rio.  Na frente dos outros ele achou um ruim danado, mas com minha mãe bem que ele gostou. Ele se riu e comentou assim baixinho: Veja! Apontando com o beiço para mim. Eu vi porque olhei assim de lado. Tá virando homem.  Senti o orgulho nos seus olhos de ter um filho homem.
Mas como ia contando doutor, o homem um baixinho atarracado foi chegando devagar, desconfiado. Peste de pedra. Quentura. Ao chegar ao pátio bem na sombra da jurema, ofuscado pelo sol os olhos um pouco fechados, tirou o chapéu e falou que vinha de parte de seu Matias lá de Borocongó e se possível queria uma estadia, um dia já bastava, o mais tardar dois, e que depois seguiria viagem para Piancó. Cabra dos diabos, gota serena.
Escreve: Homem baixo, protegido de Sr Matias de Borocongó. Trocou a folha e botou outra folha branca.
Meu pai disse que não se aperreasse e que de Matias vinha sempre coisa boa, era do mesmo partido e que colocasse as coisas na despensa e podia ficar no quarto dos fundos, ficassem descansados. E aproveitasse que Maria tinha acabado de fazer o almoço que todos sentassem a mesa que comeriam a melhor galinha de cabidela da região. Bexiga da peste.
E nessa época tava seco prá encardir. Vixe! Só se via pelos caminhos calangos e lagartixas. Alguns urubus nas pedras. O carcará voava baixo procurando algum bezerro desgarrado, as juritis já tinham se mandado para outras bandas, e as únicas plantas verdes ainda era a palma plantada no oitão, e os três juazeiros da frente da casa.
Pensei comigo na época. Não se apoquente home. Levanto a cerca, corro de volta, almoço e ainda vou ver aquela gostosura de mulher.  A galinha bem cedo eu sangrei, coloquei o sangue com o vinagre no prato para ele não coagular e sabia que agora mesmo ela tava cheirando longe, arriégua! e aí depois ia ter a cantoria.
Mas não era simples assim não moço. Até o açude foi uma boa caminhada, as veredas secas e quando passava as rolinhas revoavam. Nisso pisei num espinho de juá. Peste! Peste! Entrou pela sola a fora, que eu senti lá no meu íntimo. Sentei quase chorando de dor, e puxei com força. O diabo havia quebrado dentro. Agora ia mancando e sabia que a noite ia doer, depois no outro dia amanheceria reimoso, inflamado sem poder tocar o chão. O remédio eu sabia. Tinha que esquentar o sebo de carneiro, na lamparina e fazer pressão, que no outro dia o espinho com um aperto dolorido saía. Depois cortei caminho, pela capoeira, cheia de carrapicho, mandacaru seco e lajedos. Caminho da peste aquele.  As ramas secas, relava, ralavam, queimava a pele e sol uma quentura da peste, o sal do suor ardia à pele. Arrelia e gastura.
Nesse ínterim tive que me lavar no açude que tinha virado uma poça só. Dava até pra ver o lombo das traíras bordejando no barro. Que pena deu. Em volta a terra esturricada. Desci a barragem e avistei a porteira. Bem em cima um casal de João de barro. Um cantava e outro respondia. Bom sinal. Chuva? Nem sinal. Interessante. Os cachorros não correram. Rosnava só. Como quando entoca um tatu. Cheirava em volta e cavava com as patas. Do mesmo jeito. Achei esquisito. Corri todo o pátio, até as galinhas d angola fizeram um escarcéu. Subi os degraus num pulo. E o que vi moço até hoje não esqueço. Meu pai, seu Amâncio, moço, estirado na sala morto. A bíblia sobre seu peito. Não acreditei. Gota serena da peste. E bem la nele, moço, uma faca enfincada. Tonteei. Segurei nas paredes para não cair.
Escreve aí: Arma do crime branca. Faca peixeira.
Atravessei o corredor desorientado, doutor. Minha mãe... Mãezinha... As panelas queimando. A cabidela seca. Minha mãe caída de banda. Minhas pernas tava bamba moço, nem sentia mais o espinho. Corri pro quarto. Alguma explicação. Minha mana Aparecida, na cama toda usada moço. Amarrada e amordaçada. Assim de quatro que nem uma cabrita. Coitadinha. Até golfei quando vi. Moléstia dos diabos! Bestas feras! Não tinha precisão disso. Uma menina santinha ainda.
E aí minha vida virou toda, moço. Ali mesmo jurei vingança.
Solidão... Solidão... Gavião no céu azul. Estrela no fundo do mar. Cruzes a beira do caminho. Peguei meu rifle papo amarelo, meu punhal cabo de prata, uma garrucha de dois canos água no cantil, carne seca no embornal e caí no mundo, andei... Andei... Anos a fio a procura doutor.
Não deixaram rastro moço. Dizem que a vingança é um prato frio moço. Mas mesmo frio eu desejava com todas as minhas forças. E nessa procura, na solidão de meus caminhos eu não tive paz um dia sequer. Não passei um dia sem pensar naqueles malditos que tirou a vida de quem eu mais amava.
Já havia perdido as esperanças doutor, tinha voltado para casa, depois de andar como cigano essa região toda desde Minas passando pela Baía, Sergipe, Alagoas, Paraíba e Pernambuco. De norte a sul leste a oeste. Nada deles. Tinha até já plantado um roçado bom de macaxeira, que estava no ponto de colheita, feijão de corda e lá perto do serrote um roçado bom de milho. Tinha também uns capotes bons, umas galinhas poedeiras e umas cabras leiteiras.
Tudo parecia de bom modo. Mas restava em mim aquela ferida moço. Tinha jurado. E juramento é coisa séria. Foi quando Nonato, coiteiro de Meu padrinho lampião, chegou numa mula toda suada, no terreiro e sem nem desmontar gritou: Os desgraçados que você procura, tivemos notícias eles vivem numa pequena roça lá no Ceará. Meu coração disparou doutor. Levantei de um pulo. Nesses anos todos, várias notícias assim, mas todas falsas. Essa de meu padrinho com certeza era verdade.
Tomei um gole de água fresca da moringa, e sentei no alpendre.
-Se achegue homem! Quer um café uma cachaça?
-Uma cachaça!
Olha Lampião ofereceu um de seus capangas, se o senhor quiser para lhe acompanhar nessa viagem.
-Não carece! Disse. Essa é guerra particular. Mas mesmo assim agradeça.
Nesse dia mesmo arrumei tudo prá viagem. Duas mulas boas e um burro. Carne seca e água. O punhal na cintura, o papo amarelo atravessado e duas cartucheiras cheinhas assim ó, de bala. Piquei na estrada.
Passei muito lugar bonito nesse sertão. Mas não tava para fazer turismo não. Viajei e viajei. Parecia que nunca chegava. É como aquelas festas esperada. O diabo do tempo essas hora não passa.
Uma tarde avistei uma casinha de meia água no pé duma serra. Deixei os animais amarrados, e fui à maneira dos índios, para examinar mais de perto. Analisei a região. Eles escolheram bem o lugar.  Quem chegasse pela estradinha era logo visto de longe. Esperei anoitecer. E desci como um rato em silêncio. Esperei acordarem. Peguei primeiro o baixinho. Apontei o fuzil para sua cabeça e perguntei:
-Onde você deu a primeira facada? O bicho começou a chorar e rezar. Cadê a coragem hem doutor. Ele falou que foi debaixo do braço de papai num sabe doutor. Ai eu desembainhei o punhal visse, ele até brilhou na luz do sol. O bicho tremia que nem urubu cangueiro. Aí enfiei aqui ó, bem lá nele debaixo do sovaco. Lembrei quando eu matava porco. Do mesmo jeito doutor. O bicho tremia, suava, dava até para escutar seu coração num sabe. E aí senti a catinga de mijo. O Senhor sabia que quando se morre fazemos nossas necessidades? E aí o soltei e despencou no chão durinho.
Escreve aí: matou com atos de crueldade. Tudo premeditado.
Peguei o da zabumba. Ele começou sofrer bem antes. Quando sabemos o que nos vai acontecer à dor é maior. Aí perguntei:
-E você, filho de uma égua, onde você deu a maldita facada?
Ele falou que foi aqui ó lá nela, minha mãe, bem em cima do umbigo dela. Peguei pelos cabelos e arrastei lá fora. Ele cobria o bucho com as mãos. Pedia piedade. Que piedade? Ele não teve com ninguém? Dei uma só, bem no umbigo. Entrou até o cabo. É parte sem osso. Mole. Só tem bosta. Aí desceu o melaço. As tripas. Morreu rápido o desgraçado.
Aí peguei o do triangulo. Um negrinho magricela. E você demônio. O que fez a minha irmã? Mandei-o tirar a roupa e ficar de quatro. Peguei o cabo de uma enxada e enfiei no cu dele. Até tocar no fundo. O bicho gritava que nem porco sangrado. Depois dei umas pauladas na sua pica que ficou roxa. Arrebentei seus colhões. Morreu gritando de dor.
Nisso a moça chorava dizendo que não tinha feito nada. Pensei assim: Se não fez nada pecou por omissão. Ela estava entregue a mim, sozinha naquele deserto, em volta só a caatinga.
Aí arresolvi viver com ela. Vivi com ela bem dois anos. Até o senhor me encontrar naquele pé de serra. Também tava cansado de fugir. De se esconder. Vida de bicho, vixe. Não é bom. Se, matei tenho que pagar. Sei disso. Ela foi uma boa amásia. Calada. Trabalhadeira. Esqueci até o sangue ruim. Isso tudo.
Escreve aí: Cárcere privado.
O que quero agora é pagar o que devo. E devo muito. Assim às vezes, essa dor no coração que me acompanha me deixe um dia. Essa é minha sina.
Depois de cárcere privado, ponto final.
O escrivão destaca a folha de papel junta à outra onde tem o título: O afilhado do diabo grampeia e entrega ao delegado. Caso encerrado.










quarta-feira, 26 de junho de 2013

Veleidade







Como arquitetar versos em universo tão perverso? 

Confesso que
                                          No afazer do poema,
 Ao sentar-me ante a janela,
                                           Desejo sempre construir o belo,
O romanesco,
O singelo.
                                             Mas o que vejo no externo?
Flagelos... Flagelos... Flagelos...
Por isso o verso nasce assim, torto,
                                 Quase morto.
                                Sem cadência,
     Como uma forte rajada de vento,
     Tiro de metralhadora estridente,
                    Abatendo inocentes,
     Palavras que surgem erráticas,
     De um antigo dicionário.
                                   

A iniciação







Levado por um primo, que dizia sempre, - você verá que fim de semanas vai passar, - entrei finalmente numa rinha de galo. Achei que não ia gostar nada do que ia ver. Achava que ia encontrar lá só “gente do povo”, como dizem, mas o que encontrei fora uma assistência feroz e mista, pois tinha toda a camada social, desde advogados, dentistas, médicos, empresários e políticos.
Sentei onde ele determinou. Desconfiei que ele quisesse secretamente me aproximar da realidade da vida. Justo na primeira fila. Tinha uma cancha redonda no centro, e em volta uma pequena arquibancada que já estava repleta. Um longo corredor cheio de gaiolas e nelas galos coloridos de todas as cores e tamanhos. Cantavam sem parar. Achei que se falavam mal entre si. Depois de os pesarem um a um, e arranjarem os pares, começariam as brigas. Os técnicos ou criadores, os preparavam com cuidado: Colocavam bicos e esporas de prata cobertas com fitas adesivas e esparadrapos adequados para matar o adversário.
Enquanto acontecia tudo isso do outro lado da cancha sentou-se uma linda mulher. Trajava-se de uma minissaia e quando cruzou as pernas quase perco o fôlego. Usava óculos escuros e as unhas pintadas de vermelho. O que espera uma mulher daquela categoria nesse antro de violência?
Logo os técnicos entraram na cancha e jogaram os galos um em cima do outro. Estranharam-se e começaram a trocar pernadas. Ouvia-se o batido das asas, e uma pancada seca de osso quebrado. A poeira levantava. O galo negro de crista marcada de lutas anteriores recebeu uma esporada no pescoço. Cambaleou para trás. A mulher levantou-se em gritos. Mata! Mata! Confesso que eu não estava acostumado com aquilo. Tanta violência. Depois ela sentou-se mais calma. Nisso o galo balançou a cabeça como estivesse grogue, e saltou com os dois pés no peito do adversário. Sangue voou para todos os lados. É um cheiro doce o cheiro de sangue. A cor é de um vermelho vivo. Começaram as apostas. Dinheiro vivo. Não sei como eles entendiam- se naquela gritaria infernal. Às vezes era só preciso uma mímica.  Aceitavam-se as apostas. O outro gritava: Aceito. Três por um no galo vermelho. Aceito.
Ela agora sorria com uns dentes branquinhos. Seria para mim? Era muita sorte. O galo vermelho velho de guerra esperava o outro saltar e aí saltava quando o outro caía acertando-lhe perto do ouvido. O galo preto segurou-lhe pela crista e bateu com as esporas no pescoço do outro. 
Ela descruzou as pernas. No fim das coxas roliças uma forma saliente de um triângulo. Suspirei.
O galo preto estava irreconhecível. As penas molhadas de suor, a crista caída de lado, o bico aberto buscava o ar. Nisso alguém atrás de mim que parecia ter experiência falou num sussurro:
- Esse galo preto é ruim. O outro é que é bom.
E eu que nunca tinha apostado tirei uma nota de cem e gritei:
-Cem no galo vermelho. Três aceitaram. Seria uma barbada pensei. O galo preto está morto de cansado e ainda com a dica, fica fácil.
Ela sorria para mim. Tirou os óculos e deixou-me ver seus olhos.  Azuis. Da cor do céu lá de fora visto entre os coqueiros.
Nisso ouve uma tremenda algazarra. Quando eu vi num relance, o galo preto, pular uma única vez acertando o vermelho bem dentro dos olhos. O vermelho tentou ficar em pé, mas saiu como tivesse perdido o equilíbrio arquejando. Como um soldado mortalmente ferido pedindo socorro. O público gritava.  O vermelho tentou levantar-se em vão. Lembro de uma vez ter sentido a mesma coisa que estava sentindo agora. Foi quando eu tinha meus doze anos. Todo mundo duvidou se eu faria. Levantei decidido: peguei a faca de cozinha, puxei o pescoço da galinha para debaixo dos pés e cortei-a. Ela demorou morrer. Quando eu dei por mim tinha nas mãos a cabeça dela, os olhos fechados, a língua virada e tão pálida que desmaiei. Depois quando voltei a si me contaram que não teria sido nada, foi só porque eu tinha sentido dó. E para matar não se pode ter dó.
Mas o galo deu a última estremunhada e morreu a meus pés. O galo preto ainda foi para cima, viu que só restava do outro a carcaça morta no centro da arena.  Então subiu sobre ele e fez a cópula. Não bastava só a vitória e a morte. Queria mais. A humilhação total. O aniquilamento. Lembrei dos judeus nos campos de concentração.
Irritado paguei os caras.  Aproveitando o burburinho cheguei perto do homem que me deu a dica falsa e perguntei:
-Você disse que o bom era o preto hem! Enganou-me!
Ele me chamou num canto e confessou:
-Não podemos nem falar, pois sou treinador, mas não enganei. Realmente o vermelho é bom, não mata. O preto sim é ruim.
Entendi tarde demais.
Desde esse dia freqüento diariamente a rinha. Ganho e perco. Talvez porque ainda não consigo distinguir o bem do mal. Vez ou outra também eu saio com aquela mulher. Deve ser para me vingar do seu homem ou de mim.  Não sei.  
Na cama ela me pede para bater-lhe. Dou umas palmadas fortes. Puxo seus cabelos. Ela adora a violência. Goza várias vezes. Nós somos ferozes. Se eu não tivesse visto todo aquele sangue não teria coragem. E essa coisa de sangue, violência e morte é pura adrenalina. Foi minha iniciação.  Não tinha idéia do que estava perdendo.



sexta-feira, 21 de junho de 2013

Nossos medos








Tenho muitos amigos com diversas opiniões sobre o medo.  Esse tirano que nos acompanha até o fim. Aliás, começa bem cedo quando ainda estamos na barriga de nossas mães protegidos pela placenta. Talvez por isso quando a futura mamãe se acha sonhando com nossa vinda, com a vida do filho, ou esquecida em outros pensamentos nós a chutamos para avisá-la: Não se esqueça de mim. O medo do abandono.
Depois que nascemos não sei se por estarmos na faze oral, só sei que quando nos sentimos afastados do seio materno logo choramos. Temos medo de ficarmos sem o aconchego e principalmente sem o nosso alimento. Medo da fome.
Depois na faze das primeiras letras, temos medo do escuro, medo do bicho papão, medo disso, medo daquilo e daquilo outro.
Na juventude temos medo do primeiro beijo, da primeira namorada, da primeira vez, medo da solidão, medo do nada, do tudo, do grande do pequeno, da altura, do elevador, de assalto, do sombrio, do diabo a quatro.
Em todas essas fazes da vida tivemos medo da morte. Só que na velhice ela é mais plausível, mais próxima e certa.
A respeito do medo lembro-me de uma poesia de Drummond que fala tão bem assim desse sentimento que nos caça no dia a dia é nossa sombra:
“cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”
E todos sem exceção temos medo: Os amigos, os inimigos, os pais, os filhos, os parentes, aderentes, fulano e sicrano.
Tenho um amigo, que morria de medo de se tornar corno. Por isso como ele dizia, só pegava mulher feia. Segundo ele, as mulheres belas todos desejam, são muito requisitadas, caçadas até a exaustão. Já as feias ficam mais resguardadas.  E ele acrescentava ainda: E as feias são muito, mais muito melhores. Completava: As feias quando faz amor, parece que ciente da plástica, na hora do vamos ver, se interessa muito mais, vai com gás e nos oferece noites memoráveis. Já a bonita acha que só beleza basta. Finalizando: São muito mais quentes dizia. Hoje já não sei dele.
 Outro ouvindo essa história me disse que desse medo passava longe. Se corno fosse, corno era e ponto final. Mas sem essa de não cobiçar mulher bonita. E arrematava: É preferível dividir mel com outros a comer merda todo dia. É ou não é? Perguntava.
Fiquem sabendo que não compartilho nenhuma dessas opiniões.
Mas o medo dele mesmo é comum. Não era medo da morte, do fisco, da mulher nada disso. Ele é advogado, não vou dá nomes aos bois, vou contar só o fato. Ele me disse que tinha uma secretária que era um estouro. Seios durinhos, pernas longas e torneadas, boca carnuda e aqueles pelinhos louros na nuca que arrepia ao longo do pescoço. Certo dia depois de muitas cantadas e presentes incontáveis ela aceitou ficar com ele. O escritório estava vazio, só o barulho do ar condicionado e uma música ao fundo. Tirou a roupa tudo nos conformes. Ela vestia calcinha azul turquesa, usava uma colônia que deixava a pele fresca e brilhosa, e ele estava como o Vesúvio em erupção. A visão dela ali em pelo em sua frente foi algo assim do outro mundo. Ela tinha até aparado, assim como o cabelo de Neymar, ele disse. Estava tudo no bem bom, ele mão naquilo, ela boca nisso e estava uma loucura. Quando chega naquele momento para colocar a camisinha, plim!   Nada aconteceu. Seu maior medo era broxar.  Logo àquela hora impossível. E teve que ouvir essas frases costumeiras: Isso é assim mesmo. Não dá importância!  É o cansaço, o stress. Dizia Milene sua secretária. Ela foi tão compreensiva.  E ele não se deu por vencido. Separou-se da mulher e casou-se com ela. Mas esse não era seu maior medo.
Depois ele me contou:
Eu morro, mas morro mesmo é de viajar de avião. Sinto pavor.  Você sabe. Mas duma certa feita fui obrigado a voar. Havia pressa em tal compromisso.  Assim fiz um mês de tratamento com um psicólogo. Ele dizia que eu tinha de mudar minha forma de pensar, ser mais positivo, mudar as imagens de minha mente, essas coisas que um mês inteiro treinei a fio. Ainda mais que minha mulher é aeromoça agora, pensei, e voa quase todo dia, não era motivo de preocupação, as estatísticas dizem que é o meio de transporte mais seguro do mundo. Mas sabe como é o medroso.  Pensa que justamente o dele é que vai cair. E tentem mudar sua opinião.
Só sei que um belo dia afinal estava sentado na poltrona do avião. Fui convencido pela minha mulher. Voaríamos juntos. Ela é agora comissária de bordo. Beleza. Pelo menos se eu sentir algo ela está por perto. Pois bem. Só não queria conversa com ninguém. Penso que no silêncio, as forças ocultas ajudam mais. O avião começou a taxiar. Eu observava pela janelinha o tempo. Por sorte céu de brigadeiro.  Somente alguns urubus. E se um bicho destes entrar pela turbina. Ai , ai. Milene minha esposa, chegou lá na frente e começou falar sobre o que se tem que fazer em caso de acidente. Ela já havia treinado comigo isso. Meu coração começou a palpitar. Modifiquei meu pensamento. Vislumbrei o avião pequenino e longe e o vendo de cima. Isso me acalmou um pouco. Peguei uma revista. Não consegui ler a primeira frase. A aeronave se postou na cabeceira. Ia decolar da pista 09 esquerda de Guarulhos, rumo ao Galeão. Vento calmo. Sei isso porque cheguei até a aprender a pilotar jatos no computador em vôos on line. E sei que aqui o piloto está recebendo autorização para a decolagem seguindo uma carta de saída, depois vai seguir uma aerovia, depois usará uma carta de chegada, de aproximação e autorização para pouso, tudo isso monitorado por radares. Tudo com total segurança. Mas eu continuava inseguro.
A aeronave acelerou. Os motores tremeram. Aqui meu coração queria sair pela boca. Um compartimento se abriu. Procurei ajuda olhando a poltrona vizinha. Duas freiras seguravam os terços e rezavam. Se as santas com a proteção de Deus mesmo assim tinha medo, imagine eu que era ateu! Porque depois desse vôo prometi tornar-me católico fervoroso e ir a Aparecida uma vez por ano. Olhei para o outro lado. Um jovem casal se beijava na boca como num gesto de despedida. Agora estava desesperado. Lá na poltrona da frente avistei um menino dos seus cinco anos mais ou menos. Ele carregava um skate na mão e olhava sorrindo pela janelinha. Deixa de ser cagão falei para mim. Veja aquela criança. Se espelhe nela. Mas e se com o skate o diabo do menino quebrar o vidro? Voaríamos todos para fora puxados pelo buraco. Tentei avisá-lo. A voz não saia. E o menino repetia o que eu não queria ver:
-Agora estamos pertinho das  nuvennnnns! Bruuuum! Imitava o barulho com o skate. Bendita são as crianças que não tem preocupações.
Eu sozinho e meu medo que agora se tornara terror.  Chegamos ao nível de cruzeiro. Dizem que é o momento mais tranqüilo da viagem. Muitos desabotoaram os cintos. O meu continuou afivelado. Mulheres bonitas começaram a servir comidas. Inclusive a minha com seu par de pernas longas.  Eu não queria mostrar todo meu medo. Ela me deu por baixo dos panos três dozes de uísque. Piscou para me acalmar. Sorri amarelo. Ela seguiu corredor a fora. O senhor deseja o que? Mais o que senhora? Muito educada ela.
Depois passaram recolhendo.  Milene passou de volta.  Brinquei: Belas pernas, morena. Ela riu. Devia ser o efeito do uísque. Era legal brincarmos assim sem ninguém saber se éramos casados. Fazíamos isso muitas vezes. Um dia marcamos numa praça de uma cidade um encontro como se não nos conhecêssemos. Era um jogo. Gostávamos de fazer isso. Depois eu chegava e tentava conquistá-la. Tudo acabava nós num motel fingindo sermos desconhecidos.
Dez minutos depois no avião muitos roncavam a custo de tranqüilizantes. Eu continuava aceso de ouvido nos ruído. Tinha aprendido todos. Enumerava cada um: Esse foi o trem de pouso, esse outro os flaps, agora o rádio. Sabia que a aeronave era guiada por antenas, GPS e todo um aparato. Aí quando a aeronave estava toda escura, o piloto tinha desejado bom vôo, falado que lá fora fazia cinco graus negativos à maioria dormindo ouvi um barulho que não estava no meu manual.
O piloto nos avisou que ia passar por uma zona de turbulência, mas que não éramos para nos preocupar. Ainda bem que foi rápido. Surgiram alguns barulhos estranho.
Fui fazendo a chamada. Trem de pouso não era. Flaps também não, pois estão recolhidos. Os compartimentos de passagem todos trancados. As freiras silenciosas. O casal dormindo. Um velho roncando de boca aberta. O menino comendo bata fritas. Empurrado pelo uísque levantei-me em silêncio.  Consegui andar até o banheiro. A porta estava encostada. O barulho era tipo nhec –nhec- nhec- nhec. O que seria? E se for um terrorista preparando uma bomba. Melhor avisar a comissária. Ou algum vazamento na tubulação. Algum rato. Não. Ratos gostam de navios. O que seria? E aquele óleo pingando numa das asas? Empurrei a porta. Fiquei estupefato. Estava ali uma pessoa digna de todo o meu respeito superando os maiores medos pela ordem que são:
 - medo de voar,
-de broxar e
-de morrer.
 O piloto transava com minha mulher no banheiro. E ainda falou quando me viu:
-Fique tranqüilo. Estamos voando com o piloto automático ligado.
Eu ainda pensei gritar com os dois: “Quando chegarmos à terra firme você vai ver. Mas como falar isso com o piloto? O cara que tem a missão de nos levar lá para baixo com segurança.
Voltei para minha poltrona e afivelei o cinto.