quarta-feira, 26 de junho de 2013

A iniciação







Levado por um primo, que dizia sempre, - você verá que fim de semanas vai passar, - entrei finalmente numa rinha de galo. Achei que não ia gostar nada do que ia ver. Achava que ia encontrar lá só “gente do povo”, como dizem, mas o que encontrei fora uma assistência feroz e mista, pois tinha toda a camada social, desde advogados, dentistas, médicos, empresários e políticos.
Sentei onde ele determinou. Desconfiei que ele quisesse secretamente me aproximar da realidade da vida. Justo na primeira fila. Tinha uma cancha redonda no centro, e em volta uma pequena arquibancada que já estava repleta. Um longo corredor cheio de gaiolas e nelas galos coloridos de todas as cores e tamanhos. Cantavam sem parar. Achei que se falavam mal entre si. Depois de os pesarem um a um, e arranjarem os pares, começariam as brigas. Os técnicos ou criadores, os preparavam com cuidado: Colocavam bicos e esporas de prata cobertas com fitas adesivas e esparadrapos adequados para matar o adversário.
Enquanto acontecia tudo isso do outro lado da cancha sentou-se uma linda mulher. Trajava-se de uma minissaia e quando cruzou as pernas quase perco o fôlego. Usava óculos escuros e as unhas pintadas de vermelho. O que espera uma mulher daquela categoria nesse antro de violência?
Logo os técnicos entraram na cancha e jogaram os galos um em cima do outro. Estranharam-se e começaram a trocar pernadas. Ouvia-se o batido das asas, e uma pancada seca de osso quebrado. A poeira levantava. O galo negro de crista marcada de lutas anteriores recebeu uma esporada no pescoço. Cambaleou para trás. A mulher levantou-se em gritos. Mata! Mata! Confesso que eu não estava acostumado com aquilo. Tanta violência. Depois ela sentou-se mais calma. Nisso o galo balançou a cabeça como estivesse grogue, e saltou com os dois pés no peito do adversário. Sangue voou para todos os lados. É um cheiro doce o cheiro de sangue. A cor é de um vermelho vivo. Começaram as apostas. Dinheiro vivo. Não sei como eles entendiam- se naquela gritaria infernal. Às vezes era só preciso uma mímica.  Aceitavam-se as apostas. O outro gritava: Aceito. Três por um no galo vermelho. Aceito.
Ela agora sorria com uns dentes branquinhos. Seria para mim? Era muita sorte. O galo vermelho velho de guerra esperava o outro saltar e aí saltava quando o outro caía acertando-lhe perto do ouvido. O galo preto segurou-lhe pela crista e bateu com as esporas no pescoço do outro. 
Ela descruzou as pernas. No fim das coxas roliças uma forma saliente de um triângulo. Suspirei.
O galo preto estava irreconhecível. As penas molhadas de suor, a crista caída de lado, o bico aberto buscava o ar. Nisso alguém atrás de mim que parecia ter experiência falou num sussurro:
- Esse galo preto é ruim. O outro é que é bom.
E eu que nunca tinha apostado tirei uma nota de cem e gritei:
-Cem no galo vermelho. Três aceitaram. Seria uma barbada pensei. O galo preto está morto de cansado e ainda com a dica, fica fácil.
Ela sorria para mim. Tirou os óculos e deixou-me ver seus olhos.  Azuis. Da cor do céu lá de fora visto entre os coqueiros.
Nisso ouve uma tremenda algazarra. Quando eu vi num relance, o galo preto, pular uma única vez acertando o vermelho bem dentro dos olhos. O vermelho tentou ficar em pé, mas saiu como tivesse perdido o equilíbrio arquejando. Como um soldado mortalmente ferido pedindo socorro. O público gritava.  O vermelho tentou levantar-se em vão. Lembro de uma vez ter sentido a mesma coisa que estava sentindo agora. Foi quando eu tinha meus doze anos. Todo mundo duvidou se eu faria. Levantei decidido: peguei a faca de cozinha, puxei o pescoço da galinha para debaixo dos pés e cortei-a. Ela demorou morrer. Quando eu dei por mim tinha nas mãos a cabeça dela, os olhos fechados, a língua virada e tão pálida que desmaiei. Depois quando voltei a si me contaram que não teria sido nada, foi só porque eu tinha sentido dó. E para matar não se pode ter dó.
Mas o galo deu a última estremunhada e morreu a meus pés. O galo preto ainda foi para cima, viu que só restava do outro a carcaça morta no centro da arena.  Então subiu sobre ele e fez a cópula. Não bastava só a vitória e a morte. Queria mais. A humilhação total. O aniquilamento. Lembrei dos judeus nos campos de concentração.
Irritado paguei os caras.  Aproveitando o burburinho cheguei perto do homem que me deu a dica falsa e perguntei:
-Você disse que o bom era o preto hem! Enganou-me!
Ele me chamou num canto e confessou:
-Não podemos nem falar, pois sou treinador, mas não enganei. Realmente o vermelho é bom, não mata. O preto sim é ruim.
Entendi tarde demais.
Desde esse dia freqüento diariamente a rinha. Ganho e perco. Talvez porque ainda não consigo distinguir o bem do mal. Vez ou outra também eu saio com aquela mulher. Deve ser para me vingar do seu homem ou de mim.  Não sei.  
Na cama ela me pede para bater-lhe. Dou umas palmadas fortes. Puxo seus cabelos. Ela adora a violência. Goza várias vezes. Nós somos ferozes. Se eu não tivesse visto todo aquele sangue não teria coragem. E essa coisa de sangue, violência e morte é pura adrenalina. Foi minha iniciação.  Não tinha idéia do que estava perdendo.



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