sábado, 28 de julho de 2012

O dia em que quase virei político







As semanas que antecedem uma eleição são assim mesmo. Aparecem candidatos coloridos, arrogantes, humildes, ricos, pobres, tristes alegres, astutos, broncos, inteligentes, verdes, vermelhos e por aí vai.
-Ufa! Foi a primeira vez que escrevi tantos adjetivos juntos, sem, no entanto, acho eu,  merecer alguma crítica.

 Lição  número um que vemos nalgum manual de escritor se por acaso existisse um. Escritor é bicho difícil. Verdade. Diz assim: Não use o adjetivo a não ser que seja para mostrar ou esconder o personagem. Impressionante.
Não desligo a televisão. Fico observando os tipos. Uma verdadeira fauna.

Lembrei-me de um dia que meu pai me levou para escolher um pássaro como meu primeiro animal de estimação.
Cheguei à feira, pois lá no interior da Paraíba é assim. Mil gaiolas, pequenas, graúdas, de arame, de palito, com duas janelas, com poleiros  e sem.

Assustei com tanta possibilidade. Mesmo eu criado no mato, acostumado em pegar passarinho no ninho. Criava desde filhote até adulto. Todos ganhavam nome mesmo. De gente sim. E aí viravam membro da família.

Por isso falo que seria o primeiro sim, pois não se contam aqueles que vivem como gente, tendo sua própria vida, seu canto, e quando morria tinha o velório e enterro como mandava o figurino. Lembro-me com saudade da gata Mimi.

Ela era um ser da família. Mais até, pois era a única a sentar-se na cadeira de balanço de papai. Mesmo sabendo que poderia acordar assustada com um grito. Era sempre ás seis quando tocava a sirene do DNOCS. Tinha até uma brincadeira com essa sigla. Falávamos: Deus não olha os cossacos sofrerem.

Continuando:
Nós mesmos, os filhos, se por acaso, sentados, ao toque da sirene levantávamos sem demora, para que o travesseiro esfriasse e ele não falasse assim:

-Diacho! Quem sentou aqui com bunda tão quente? Não queríamos ter a bunda quente.

Mimi não. Ficava ali balançando o rabo e de vez em quando abria os olhinhos e miava como se sonhasse. Quando a porta abria saltava de um pulo e vinha esfregar-se em nossas canelas. Uma vez. Duas.  E voltava olhos fechados alisando o pelo  com prazer.

Depois ia para baixo da mesa onde estava a tigela com seu leite. Dava umas lambidas e pulava a janela  para a vida do quintal. Uma vida imensa. Era lá toda sua vida.  Por baixo das telhas, do pé de goiaba, do coqueiro que tinha rabiscado em seu tronco, nomes, segredos nossos, que ela ia caçar os seus ratos.

Nesse ínterim papai vinha do banho, cheirando a sabonete de coco, as chinelas batendo no cimento liso e antes de sentar  batia o travesseiro, virava ao contrário, e ligava o rádio na hora do Brasil. Eram doze olhos no escuro. Éramos seis. Meus irmãos e Mimi.

Hoje é que sei que aquela música que tanta temia era de Carlos Gomes “O Guarani”. As notícias que me fizeram tremer no fundo da rede quando eu principiava em dormir. Essas notícias vinham sempre acompanhadas dessa música. Mimi também não gostava.
Eram como o estalo de chicote no vazio.

“Assassinaram Kennedy”. Numa voz fanhosa. Não tínhamos a menor ideia de quem ele era na época. Depois soube que era presidente dos Estados Unidos, uma grande nação, essas bostas diziam.

Eu achava que melhor que  o Brasil não havia. Era um país que não tinha terremotos, vulcão nem grandes catástrofes. Somente algumas secas avassaladoras, mas como dizia de nós, o nordestino é um forte. Pensava até que os assassinos sempre têm seus motivos. E já sabia que tudo  girava em torno de interesses.

Depois: “O primeiro homem pisou na lua”. Grande merda  eu pensei na época. Eu já havia pisado em espinho de juá que dói tanto, dá até febre, pisado em xique-xique, mandacaru, em bosta de cavalo que dava frieira entre os dedos. Que glória tinha em pisar na lua?

Lembro-me  de meu pai  direitinho, dizendo:
-É tudo mentira desses americanos pernósticos. Eu sei por que vi a cobra fumar. Eles inventam porque são metidos a grande. Vivem colocando o dedo onde não são chamados. Umas borras bostas isso é que são.

Ainda hoje tem muita gente boa que não acredita que o homem foi na lua. Pergunte ao Manuel da venda. Ele vem com mil impropérios.
Mas voltando ao assunto, jamais havia visto tanto passarinho junto. Tinha azulão, sabiá, trinca ferro, rolinha fogo- pagou, galo de campina, tiziu, coleiro, cancão, canário da terra, pintassilgo. Muitos outros que não lembro agora. De todas as cores e tamanhos. E a cantoria só vendo. Parecia a banda de música no domingo no coreto da Praça de Santa Rita.

Ficava só ouvindo apaixonado. Tinha louro também que falava. Só vendo para crê.
Mas isso são lembranças. Preciso voltar ao tema. Como o pensamento voa, já disseram acertadamente.
Tenho que falar das eleições e dos políticos. Tantas cores. As vozes macias. Ficamos até entusiasmados. Tanta lábia. Vão resolver tudo para nossas vidas. Até parece que ficaremos em boas mãos. Papai falou: “Até  mudinho uma vez ganhou.” E cumpria tudo, pois não prometera nada para ninguém. Era surdo mudo.

 Finalmente escolhi um de plumagem linda e amarela. Levei para casa na mão mesmo. “Não carecia de gaiola, dissera meu pai.” Desde esse dia andava a tiracolo com ele. Acompanhava todos os seus passos. Colocava para dormir bem embaixo de minha rede. Até o medo de escuro eu perdi. Ele ficava por ali catando algo pelo piso. Uma beleza só.

Ganhou nome, chamava-se José, e quando virou adulto transformou-se num enorme frango.

A partir daí não tive mais sossego. Primeiro foi meu pai que queria comê-lo. Chorei uma noite inteira. Venci. Depois eram as visitas, não sei se faziam por gozação, mais era só entrar na sala e falava: “Dazinha, quero almoçar esse frango”. Eu arrumava um berreiro só.
Clarice passou por esse perrengue também. Não. Não era minha namorada não. Até poderia ser se ela quisesse. Achava-a fascinante. É. A Clarice Lispector mesmo. Apaixonei-me por ela quando escreveu: “Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania, depende de quando e como você me vê passar”.

Minha mãe tentava explicar que galináceos são criados para ser abatida, a mesma lenga- lenga de sempre que desde a época de Cristo ou até bem antes, se falava, mas nada mudava minha opinião.
E as visitas eram daquelas pessoas que outro já falou. Como se diz delas. Lembrei-me. Recalcitrante. O que é mesmo re-cal-ci-tran-te? Um belo conto. Leiam.

E eu argumentava que tinha pegado amor por ele, essas coisas. Que José era da família já meu amigo íntimo e tal.

E aí foi o dia que quase fui político. Tentaram me comprar como fazem com eles. Prometeram-me  coisas que sempre gostei como ir ao sítio de meu avô nas férias, nadar no rio da turbina, acompanhar os “negros” ferrar o gado de dentro do curral, pular da torre do açude essas coisas que sempre sonhei fazer e nunca deixaram.

 Sou sincero com vocês. Quase sucumbi.  Minha mãe, ela própria, quando veio da capital, fora visitar minha avó Maria mulher de seu Antônio meu avô, que estava internada, trazia nas mãos uma revista de Tarzan. Jogou-a em cima da mesa displicente.

 O título baseado em “As jóias de opar” escrito por  Roy Thomas e   Desenhos de  John Buscema   by Edgar Rice Burroughs ficou a minha frente como que piscando. A capa era Tarzan em segundo plano pendurado no cipó, na mão empunhando o punhal, e em primeiro plano um grande macaco fugindo com Jane em seus braços.
Sabiam meu gosto pela leitura, e era fã número um dos quadrinhos e filmes de Tarzan.

Meus olhos brilharam com ódio. Fiz beiços e corri para o quarto. Minha mãe foi atrás com as mesmas ladainhas, e meu primo mais chato acompanhou-a justamente para saber o desenrolar dos fatos.
Gritei encolerizado.

-Saiam daqui! Saiam!
-Mas filho, dizia ela com a voz pastosa quando queria conseguir alguma coisa, - é somente um frango que está ficando velho.
Com essa frase bati o pé.

-Se matarem José, frisei bem o nome, sumo daqui para sempre. E comecei a chorar copiosamente. Parecia que a guerra seria perdida.
Meu primo sorriu. Minha mãe arregalou os olhos.
-Esqueça filho. Ninguém matará José só se passarem por cima do meu cadáver. E colocou aqui seu ponto final.  A família toda era dramática.
-Tome a revista, ela disse.

José morreu de velho muito tempo depois. E foi enterrado embaixo da goiabeira. Fiz uma cruzinha de palitos de picolé.
A revista eu li e reli mil vezes. Lia apreciando o detalhe dos desenhos, as curvas de Jane em horas solitárias, a ferocidade do orangotango.

Muito mais tarde compreendi que o intruso era o homem branco, ele estava ali para desmatar a floresta, tirar tudo o que ela tinha de mais sagrado, os animais, as plantas os rios, e depois abandoná-la a própria sorte. Acho que essa revista, que quase serviu como moeda suja, ainda existe e dorme tranquila em algum baú velho.

Voltando ao tema principal que era a escolha de um candidato, - me perdoem, pois quando começo a escrever perco-me em detalhes, que só me diz respeito e a mais ninguém, - um conselho: Nunca escolha candidato pelas  plumagens ou canto.

E principalmente escolha finalmente um candidato, de forma que se não der certo em seu mandato, possa ser abatido e assado num belo jantar.

28/07/2012