terça-feira, 12 de setembro de 2017

Bruxas, fadas e outros demônios

                                   Bruxas, fadas e outros demônios



         


          “Lendo conto de Rubem Alves de título: Bruxas e vassouras, eu perdi o pudor de contar aqui também a minha descoberta sobre elas, as mulheres, bruxas e fadas de minha vida, só agora, após seis décadas, largando o medo de uma praga, um feitiço ou coisa qualquer”.  
           Esse era o início de uma crônica do escritor  Odlarniram Etiel Atsitab, Afegão da província de Sameroc,  ainda pouco lido por aqui,  prolixo,  escreve nas folgas, entre uma explosão  e outra pois seu principal afazer é a montagens de artefatos explosivos para dilacerar seres humanos.
          Na crônica ele fala de seus medos e segundo entrevista dada a um jornal de segunda categoria, disse o repórter na época, que nunca vira alguém tão engajado em seus planos de destruir o mundo.
         Ele conta do medo horrendo que tinha das bruxas na infância, e sua escrita tem um peso enorme quando fala das coisas mais banais, devido talvez ao desapego pela vida, afinal, qualquer hora pode receber uma missão de se infiltrar entre os inimigos e voar junto com a maior quantidade de pessoas em pedaços.

         Sobre as bruxas o caso ocorreu nos idos de mil novecentos e sessenta e quatro mais ou menos segundo texto, ele tinha oito para nove anos, tinha medo de tudo e segunda as próprias palavras  “as bruxas andavam soltas”.
         Além disso, a internet andava somente pelas universidades, a tecnologia capengava e o Google não havia sido criado ainda, fato esse de sua total ignorância. “Eu era tão “cru” disse ele, que achava que o sol girava em torno da terra, que o paraíso estava no céu e o inferno  no fundo da terra, que a mulher era um ser perigosíssimo, que as vacinas vinham para dizimar as crianças,e que vimos trazidos pelas cegonhas. Veja só”.
        Diz também que transcreveu, sem edição alguma, a escritura feita do próprio punho naquela época. Segue dizendo que todos irão notar que é texto sem influência de qualquer natureza, pois até ali só havia lido gibis, “portanto hão de desculpar não pertencer nenhuma categoria ou escola, é texto de iniciação”.  
Feito todos os rapapés vamos aos fatos.


         “Sameroc, província do Afeganistão, 26 de agosto, de 1964. Manhã de segunda feira:

          A casa estava silenciosa e lúgubre. Gosto da palavra lúgubre. Tirei de uma revista de terror.  O desenho mostrava um cemitério esparramado num pequeno morro cheio de cruzinhas de madeira. Todas as vezes que eu sinto solidão lembro-me dessa gravura.  
           Eu acabava de tomar o leite e olhava o resto de Nescau escorrer no fundo do copo esmaltado quando mulheres da vizinhança invadiram a casa pela porta dos fundos, levando toalhas, bacias e colheres enormes, encheram-nas de água e ficaram esperando a fervura. Depois entraram no quarto grande, perto do corredor que ultimamente andava sempre com a porta encostada. Eu sentia que minha mãe escondia algo, mas não sabia o que era.  Vi muitas vezes minha mãe ajoelhada pedindo proteção.
          A casa era uma construção antiga, toda coberta por telhas nuas, o que deixavam passar a luz do sol e as estrelas pelas goteiras abertas.
          Todo esse movimento aguçou a minha curiosidade e assim fingia não ter terminado ainda de beber todo o leite, quando uma delas pegou do copo, lavou-o antes de eu ter degustado o chocolate do fundo e ainda pediu encarecidamente para que eu fosse brincar segundo as palavras dela: “ com os amiguinhos no terreiro”.  Só se fosse os imaginários, pensei, pois eu era de poucos amigos. Já os imaginários pululavam em toda esquina.
           Tentei escapar correndo pelo corredor, mas ela era forte e quase me empurrou para fora, dizendo que ali não era lugar para criança. Tentei usar meus super poderes, mas nessas horas eu ficava lerdo como uma lesma. Aí o que me restou foi pegar minhas bolas de gude e ficar embaixo da mangueira, até tudo terminar, tentando a todo custo acertar os buracos, mas minhas mãos estavam trêmulas.  
          O silencio era quebrado pelo tilintar de panelas e portas rangendo. Portas rangendo e panelas batendo, a noite, o medo é maior.
          Olhei pelas frestas da janela, mas só vi uma nesga de sol que ia até a parede carcomida e fiquei contemplando a dança do pó no facho de luz.
          Voltei aos buracos e acertei da primeira jogada. Foi quando ouvi gritos vindos do quarto e fiquei apavorado. Corri para a janela e subi no muro por cima dos cacos de vidro, onde o gato andava tranqüilo sem se cortar e o que vi deixou-me em pânico.
          A mulher que me empurrou para o terreiro pedia agora quase gritando para que minha mãe fizesse força, como defecasse e ela fez, gemendo alto, sua fronte suava em bicas e segundos depois que para mim demorou uma eternidade, deu um grito medonho. Foi aí que a mulher puxou de uma vez só de entre as suas pernas abertas, um ser enrugado, sujo e feio. 
          Nesse instante eu saltei da janela correndo e só parei ante a fossa cavada no chão com ânsia de vômito. Tinha cortado o dedo e não senti, tenho uma cicatriz que carrego comigo. Dali, escutei comovido o choro de uma criança. 
Só entrei no quarto, chamado pela minha mãe uma eternidade depois. Ela estava pálida, em volta de lençóis brancos, apoiada em dois travesseiros e um leve sorriso no rosto. Uma das mulheres tinha feito um curativo em meu dedo que fiz de tudo para ficar maior e causar impacto. Ninguém notou.
O que me restou foi aproximar-me  no canto da cama desconfiado.
                A bruxa sorria descaradamente e pegou um embrulho pequeno e trouxe bem perto de mim.

          -Sua irmãzinha! Disse comovida.

         Não sei o que me aconteceu. Só sei que algo subiu pelo peito, fechou minha garganta, e caí em prantos. A bruxa ainda falou assim:
          -Ai coitadinho! Está com ciúme!

          Eu tentei esmurrá-la e dar-lhes um bom chute nas canelas, mas ela dava gargalhada.
Pegou do embrulho e colocou novamente no colo de minha mãe. Foi quando ouvi algo sugando os seus seios como tivesse ali um bezerro. Aí foi que eu gritei com ódio. Minha mãe perguntou por que eu chorava tanto e eu respondi debatendo-me no chão e puxando os cabelos e gritando alto:

          -Não estou com ciúme! Estou desesperado porque não me chamaram para ver a cegonha! Porque não me chamaram?
Todos caíram na gargalhada. Eu saí gritando e bati a porta atrás de mim.

          -Bruxas! Bruxas! Bruxas!

“Assim foi a primeira bruxaria que eu vi”.  Escreveu ele com letra de forma.

          Dois anos se passaram. Como os da casa só tinham olhos para o bebê, eu passava a maior parte do tempo no quarto dos fundos, quarto de despejos onde ficavam todas as traquitanas imprestáveis da casa que um dia teve uso e agora estava ali por defeito ou por antiguidade. Tinha de tudo.  Ferro de passar roupas à carvão, uma máquina de costura daquelas movidas a pedaladas, vários dedais, um rádio á válvulas, uma TV preto e branco,  vários discos de vinil, camas desmontadas, bonecas quebradas e livros. Muitos livros. De todos os tipo e grossuras. Romances, contos, científicos.   Tinha um que nessa época era o mais folheado por mim. Era um  atlas a cores de medicina deixado pelo meu tio que foi cortar as pessoas no hospital. Ele era médico.   Minha maior curiosidade nessa época era saber as diferenças entre homem e mulher.  Anotava num caderno de rascunho. As figuras não ajudavam muito. Geralmente eram ossos e órgão separados. Tinha também um esqueleto que ele tinha mandado o coveiro limpar as carnes e músculos e agora ficava ali em pé atrás da porta sorrindo.
         
Um desenho é que mostrou a primeira diferença que eu anotei como “essencial”. O homem tem algo como uma lingüiça e a mulher uma pequena fenda.
Nessa época eu já colecionava gibis. E uma coisa que gostava de fazer era trocá-las.
 Estava eu na casa de um amigo e tinha levado um saco lotado de revistas. Ele espalhara as suas no tapete e eu notei que elas ainda não haviam perdido o cheiro de nova.  O pai dele era dona da única banca de revistas da cidade. Tinha coloridas, preto e branco, encadernações em brochuras, álbuns grossos, todo tipo de papel. Eu estava extasiado. Uma coisa que eu não sabia fazer naquele tempo era fingir e logo que vi uma que era de meu total interesse meus olhos brilharam.
Eu estava folheando uma, lembro bem, era uma brochura, Moby Dick a baleia assassina.
 O tempo na infância são séculos demasiadamente lentos.  Foi o que talvez eu pensasse quando Anita entrou na sala com os longos cabelos em duas tranças amarrada as costas.  Era a irmã de Ronaldo. Seu vestidinho florido assustou-me demasiadamente. Minhas experiências com as mulheres eram por demais receosas.
          -Como você chama? Ela disse.
          -Oldlaniram  eu disse.
          -Ai! Que nome porreta ela gritou, sentando-se no tapete. Eu corei.
Ronaldo empurrou-a para um canto e disse:
         -Fica quieta aí! Não está vendo que estou fazendo negócio?
Engraçado que ele trata a irmã de um jeito particular.
Ela ficou ali observando.
Eu logo vi o interesse dele. As duas revistas de zorro a número 6 e 7. Vi seus olhos não sair da capa.
         -Eu quero esta!   Mostrei a grande baleia.
Anita se intrometeu novamente:
          -Vamos brincar?
Ele a empurrou de novo.
         -Mãinha! Ronaldo está me batendo! Uma voz lá da cozinha gritou:
Parem com isso se não ponho ambos de castigo!

          “Troco as duas aqui do zorro nessa da baleia eu disse”.
         -Vamos brincar? Anita falou novamente.
         -Tá feito ele disse.
        -Nã-nã-nã –nã-nã-nã! Disse Anita balançando a cabeça. Esta aí é minha, painho que trouxe e só troco depois que brincarmos. Ela falou assim mesmo, a conjugação verbal. Elas sabem liderar uma situação.
E aí não teve outro jeito. Brincamos de policia e ladrão, passa anel, dominó, baralho, xadrez, e agora corríamos para os esconderijos eu e ela enquanto Ronaldo contava até trinta.
Corremos quase aos trombos e quando chegava ao vinte e oito eu ainda não tinha escolhido um local quando  ela puxou-me para dentro de um guarda roupa. Bem providencial, pois ouvimos Ronaldo passar por ali correndo.  Ficamos um tempão quase colado a respiração dela soprava meus olhos cegos pela escuridão. Jamais esqueci o cheiro de naftalina.  Ali dentro a escuridão não era total , por um orifício entrava um pouco de luz.  Nós estávamos bem assustados. Eu principalmente. Agora sei por que tive tanto medo na época. Aquela proximidade era alarmante para mim. Foi quando ela pegou minha e colocou sobre seu peito dizendo:
          -Olha como está batendo forte!

Realmente batia igual o coração de um animalzinho assustado. Aí ela fez uma coisa que eu nunca mais esqueci. Chegou mais perto e beijou-me molhando minha boca com sua saliva. Eu não tive dúvidas. Sussurrei no seu ouvido:

         -Bruxinha linda!

Nosso negócio floresceu bastante. Eu te dou essa revista se você me deixar eu vê isso. Ou, se você tocar aqui dou toda minha coleção. Também trocávamos constantemente de revistas. Algumas coisas anotadas.
Mais uma diferença essencial:

  -A mulher aumenta os seios com o passar do tempo, e são macios e fofos e quando tem nenê sai leite por ali.
  -A saliva é gosmenta, mas quando acostumamos vicia.
  -A mulher é algo extraordinário e tem muito mais para se descobrir.
  -Por último e mais importante: Alice não era bruxa!  Pois segundo Rubem Alves em sua crônica, “As Bruxas verdadeiras usavam a vassourinha de pelos macios  para umedecer as mucosas das regiões entre as pernas, genitais. Assim, vinham-lhes deliciosas alucinações e elas voavam, montadas na vassourinha...
  -Alice não tinha vassoura.

Esse comércio durou uns dois anos ainda.  Até ela me dizer chorando um dia que os pais iam mudar para longe, para o sul e queria por que queria entre  juras de amor eterno que usasse minha chave na fechadura. Ela explicou tudo tim- tim -por tim-tim  mas na hora não aconteceu nada.
Quando ela se foi tornei-me um  solitária, vivia enfiado no quarto dos fundos. Por isso eu tinha a pressa de ser gente grande, crescer e viajar pelo mundo. Aí voltou novamente a total imersão nas histórias em quadrinhos.  Horas a fio em companhia de heróis e vilões de toda espécie.
E por falar em vilão, essa tarde eu me senti um, quando passei pela sala, escondendo no meio dos gibis uma revista proibida chamada de "catecismos" de Carlos Zéfiro. Essas revistas vinham do Brasil, cruzava mares e montanhas e chegava em minhas mãos através de moleques de rua.
Tendo uma, eu corria ao quarto e lia deliciando-me com as gravuras.  Um homem abraçado a uma mulher e o texto dizia: “Muito afobado, beijando-me descobriu-me um seio, e suas mãos ansiosas, repuxavam a minha calcinha e seus dedos esfregavam a minha fenda. Eu estava muito nervosa e lhe pedi para deixar-me tirar a roupa. Ele consentiu e dirigi-me ao banheiro”.
Alucinado pela gravura e as frases intensas dita pelos personagens eu estava apalpando a varinha de condão, quando  a terceira bruxa em minha vida apareceu subitamente, parada na soleira da porta do quartinho, com um sorriso no rosto, sem comentar o que eu estava prestes a fazer:
          -Prazer! Eu sou a nova empregada! Já me apresentei a todos na sala só faltava você meu rapazinho! Ela dava a mão para eu pegar. Assustado retirei a mão do calção e apertei a dela timidamente.
Lembro bem desse dia, pois a Rússia tinha acabado de nos atacar com muitos tanques e aviões. Ela disse muito tempo depois que viera com os soldados.
Eu fechei rápida a revista e levantei da cama num pulo.
Minha mãe entrou logo atrás, estava dizendo que agora aquele quartinho seria de Margarida dali por diante e que eu tirasse meus pertences.
Para encurtar a história, depois que Margarida entrou em minha vida conheci à última bruxa da infância.
Um belo dia acordei com ela em frente ao espelho e comprovei que mulher, especialmente as russas, são bruxas e fadas.
Bruxa, pois levam uma vassoura de pelos macios no meio das pernas e quando as usa voam alto no firmamento.  E Fadas, pois quando tem uma vara de condão nas mãos fazem mágicas miraculosas.

         Enceto retirado do caderno “ultra secreto” de Odlarniram Etiel Atsitab, o pequeno Afegão.