terça-feira, 1 de novembro de 2016

O buraco






                             O buraco

Tinha lido algo, a respeito da criação.  Nele o autor falava sobre a dificuldade dos primeiros passos, exemplificava com frases de outros autores e finalmente dava algumas dicas genéricas a respeito, da relevância das anotações, do escrever sem medo, dos cortes etc.

 Assim ao terminar o livro, sentiu-se como a lagarta que sai do casulo, transformada em uma linda borboleta, apta ao voo, a descoberta, ao primeiro texto.

 Nessa manhã de primavera, onde o sol brilhava lá fora, se achava frente à tela do computador. Abriu o Word e cintilou a página em branco.

Pegou o dicionário, as anotações que vinha fazendo no decorrer da semana, pensamentos, características, conceitos uma parafernália de palavras, e escreveu a primeira frase. Achou que não tinha consistência. 
A primeira frase serve de engodo para o leitor. Tem que ter conteúdo. Deletou.

          -Filho! Vem aqui!

          -Mãe! Eu estou tentando criar algo, uma poesia, um texto!

          -Deixa de vadiagem! Venha aqui!

Osvaldo deixou o computador ligado, minimizou o Word. Sempre tem os curiosos, e desceu ao quintal.

          -Seu pai pediu para você furar um buraco aqui! Temos que fazer uma cisterna! A água está cada vez mais rara.

          -Mas mãe logo agora que tinha uma ideia, o texto começara a correr macio, sem entrave, como um rio de planície.

          -Filho, primeiro o trabalho, depois a vadiagem!

Disse isso trazendo uma cavadeira e uma balde.

          -Mãos a obra, ele disse.

Tirou a camisa e ficou só de calção e descalço. Gostava de sentir a terra sob os pés.

Começou com as mãos mesmo. Nada de utensílios por enquanto. Queria fazê-lo o mais simples possível. Tirou as folhagens. O buraco seria embaixo da mangueira. Ainda bem. Uma sombra refrescante.
Quando cavou os primeiros centímetros já sangrava e doíam as unhas. A terra estava úmida e encontrou por acaso, moradores daquela profundidade. Pequenos insetos e minhocas.

As minhocas são importantes para a agricultura e para os pescadores como engôdos para os peixes.

O solo se cortado em longitudinal parece uma tela a óleo. 
Ia observando tudo isso com seu trabalho braçal. Engraçado que diferente de um texto, ele observou que cansava fisicamente no entanto a mente  estava leve e solta livre para pensar.

Pegou a cavadeira. Bateu firme no solo, e enchia a balde. Depois derramava ao lado. Ia se formando uma montanha roxa. Seria assim a formação das montanhas? Dos montes?

Gotas de suor pingavam na fronte. Ele passava o indicador e aspergia para o lado em gotas. Foi lentamente arredondando as bordas. Ansiava um buraco bem feito com paredes paralelas. Lá para o meio dia ele já desaparecia dentro dele. A terra é morna. Incrivelmente morna. Já podia sentar. E ficar olhando sua obra. A obra tinha lá sua importância, mas não era tudo. Mais ou menos um metro e oitenta de diâmetro e dois metros de fundura. Sabia por que conseguia deitar e ficar olhando as nuvens passando. A terra, essa terra que um dia cobrirá seu corpo, como um cobertor, lhe protegendo do frio, das adversidades do tempo, das intempéries da natureza, guardando seus ossos até tornarem-se iguais, somente pó.

Almoçou com grande apetite. O trabalho braçal lhe deu fome. Os outros dão-nos fastio. Será por isso que a maioria dos escritores do passado morria jovem? Será que a criação de arte suga nossa vida? Suga nossa alma?

Fez a sesta. Em sua casa era sagrado. Logo após o almoço corriam aos quartos. Um sono leve de meia hora. Levantou disposto. Passou em frente ao computador. O cursor piscava. Tinha forma de garra. Ele que quis. Baixou da internet.

A página brilhava a espera de uma palavra, uma frase, um parágrafo. Teclou sem muita convicção:

“A vida é formidável porque é finita”.

Minimiza novamente a janela.
Pegou a cavadeira e a pá. Era hora de continuar o trabalho.  Toca em algo. Uma raiz. Estava viva, pois correu uma seiva. Era o sangue das árvores. Se eu arrancar a mangueira poderá morrer, pensou. Deixou de lado. Servia como escora.
Bateu no fundo com força. Um baque seco. Duro. Uma pedra.
          -Porra!

Lembrou de Drummond: Uma pedra existia no caminho! E agora José?

Bateu e bateu. Nada. Deve ser a ponta do iceberg, se pedra fosse igual às geleiras. “Se não conseguimos remover o problema do caminho, dê a volta, contorne-o”.  
Foi o que fez. Foi contornando-a. Passou dela mais de um metro. Servia de escada. Era da cor cinza.
Um tumor? Um trombo dentro de uma artéria? Uma hemorroida? Essas imagens ridículas apareceram.

Agora tinha arrumado um ajudante. Seu irmão menor. Ele apareceu pela necessidade da obra. Victor. Tinha doze anos.

          -Você deve ajudar seu irmão! Sua mãe disse.

 Depois de lhe xingar de todos os nomes feios, pois estava perto de zerar um game apareceu na borda do buraco.
Trouxe a corda e na ponta a balde. Jogou no fundo. Ele enchia e o irmão puxava para cima, com força. O céu começou a escurecer. Victor jogou a escada e ele subiu. Por hoje chega, disse, se limpando.

Victor saiu alegre. Podia voltar ao jogo. Deixamos o buraco inacabado. Olhou de cima. Era um cone comprido. Vazio. Foram dormir.
O outro dia era sexta feira.

         -Vou passar toda féria nesse buraco, questionou.

         -Essa porra se continuar vamos chegar á china, Victor brincou.

Não era de todo uma má ideia. Chegarmos à China ou outro lugar qualquer. Continuaram  cavando. 
Incrível como o buraco os aproximou, se conheceram de verdade nesse período, mesmo.

Ele falou dos seus jogos. Era sempre uma jornada do herói. No início o herói no mundo comum, vivendo em paz, construindo junto da família.  Depois algo quebra essa harmonia. Pode ser um ataque de uma tribo, um roubo de uma mocinha, que o herói para resgatá-la terá que vencer vários obstáculos e fases. E em cada final de fase terá que lutar com um chefão. E no final do jogo lutará com o maior chefão, o mais perigoso, numa batalha épica de vida e morte, onde o herói usará todos os truques que treinou incansavelmente nas fases e vencendo o inimigo poderá levar de volta sua amada. A maioria dos games é assim.

          -Estou na última fase , para derrotar o chefão!

Findou mais um dia. Victor desceu a escada. Osvaldo ainda ficou lá dentro retirando o resto de terra. A noite tinha caído. Com certeza ele Victor foi zerar o jogo. Era sua vida virtual.  
Vida diferente. Seu irmão entrava na vida de personagens criado por outros, Já Osvaldo vivia a vida de personagens criado por ele mesmo.
Nisso uns braços puxou de volta a escada.

          -Hei! Ainda estou aqui, gritou!

Não ouve resposta.
Ouviu barulho de pá.  Pás de terra caíam sobre ele em abundancia. Alguém queria enterra-lhe vivo. Era isso. Começou a gritar. Em vão. Não lhe ouviam. 

-Eu ainda estou aqui e estou vivo, gritou.

 Por fim pensou. Tenho que fazer algo para safar-me. Saltou no intuito de agarrar a pedra. Estava fora de alcance. Os dedos estavam feridos. Doloridos.
 Mais terra caiu sobre ele, até cobrir-lhe por completo. Aturdido pensava: “Se eu fosse uma minhoca?”. Ia furando a terra até a superfície. Se fosse um verme talvez.
Mas era apenas um jovem tentando fazer um texto, que se transformou num buraco enorme, vazio, lutando contra tudo e todos, só o seu corpo, em posição fetal, engolido agora, sem meias palavras.





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