sábado, 12 de novembro de 2016

Longe dos olhos de Deus









                 Longe dos olhos de Deus


E ele disse-lhe: Porque temeis, homens de pouca fé? Então, levantando-se repreendeu os ventos e o mar, e seguiu-se uma grande bonança.

Primeira:

           Cruzamento da Rua Aristides Fagueiro com a esquina da morte. O movimento intenso de carros e motos. Eu a vi por instante. Ela estava feliz.  Via-se claramente em seus olhos. Uma moça alta, olhos claros, bem bonita, com seus vinte anos.
Quando atravessava a rua um carro azul veio em disparada e pegou-a em cheio. Fez um barulho surdo. 
Morreu na hora.
O trânsito todo parou. Só o atropelador não. Eu corri para vê-la. Aliás, todo mundo.
Virgínia era seu nome, agora todo mundo sabia. Pois ela segurava nas mãos firmes e bem pintadas, esmalte vermelho, seu convite de casamento escrito a mão:
                            
“Lindo é quando alguém escolhe pousar ao teu lado, podendo voar. Podendo encontrar até outros ninhos, outros caminhos, escolhe ficar.
Parece mentira... Resolvemos nos casar.
Dizem que é loucura... Mas esse é o privilégio de amar”


Um convite simples.  Desenhos de pássaros nas bordas.
Embaixo o nome dos noivos:
                            
                    Virgínia & Leandro


Segunda:

Meia noite, hora das feras saírem. Numa rua, um vulto trabalha silencioso no quintal. Com as mãos faz um buraco. Não tão fundo nem raso demais. A terra é escura e molhada com a neblina. Isso dificulta sobremaneira o trabalho do homem. Sim é um homem. Anda em pé e usa um chapéu de palha. Observa o buraco. Mede com um dos braços. Quando se dá por satisfeito levanta-se e entra na casa.

Volta com algo nos braços. Parece uma boneca. Uma mulher o acompanha. Colocam no fundo e vão jogando a terra. Estão enterrando. Sobrou muita terra. A mulher levanta-se e pisa socando a terra. Um pé de criança ainda aparece. A mulher discute com o homem. Depois coloca uma pedra em cima.

Vão dormir.

De madrugada como fazia todos os dias, o cão do vizinho entrava pelo buraco da cerca e virava a lata para comer. Nesse dia, sentiu algum cheiro diferente no ar. Foi até a pedra, levantou as orelhas, e começou a cavar. Cada vez mais perto, rodeava a pedra rapidamente. Enfim pega o embrulho pelos dentes e atravessa novamente o buraco da cerca. Nesse ínterim o vizinho já havia pegado a carroça e já saia para o trabalho de catar papelão, e latinhas, quando viu o cachorro, chegando.

Toma-lhe o embrulho e se assusta com o que vê dentro. Uma criança recém nascida. Escuta o peito, observa a barriga, tudo imóvel, quando observa triste que já se encontra morta.

Coloca-a sobre a mesa, e liga para a polícia. Isso já era manhã de domingo. Às dez horas a rádio patrulha chega. A criança ainda deitada sobre a mesa enrolada em sacos plásticos.

O homem explicava para o policial do rádio que já ia sair para trabalhar, quando viu seu cachorro latindo. Estranhei, disse. Quando vi essa maldade. Os policiais e o homem vão até o buraco da cerca, e vê os vestígios no quintal do vizinho.

-Quem mora aí, questiona o policial.
-Um casal. Uma moça dos seus dezessete anos e um cara mais velho.
O policial tira a arma do coldre e grita:
-Polícia! Saiam com as mãos na cabeça.
O casal com sono pesado ouve algo, e se desvencilha um do outro. Escuta gritando lá fora agora mais alto:
-polícia!

Na delegacia ela explica:
-Minha família não queria nosso namoro, por que ele é viciado, aí resolvi...
-Mas é sua filha... e era linda! Ainda o delegado falou.
-Agora esta feito, acabou! Disse ela chorando. Agora tenho que pagar.


Terceira:


Em um bar. Numa mesa um casal briga:

-Eu sei que vou sofrer!  Ainda tenho muito carinho por ti, mas infelizmente não dá mais, chega de ser capacho. 
O homem toma um gole. A mulher olha nos seus olhos:

-Você jura! Terá coragem? 
Falava isso por que todo mundo sabia que ele era “arriado os quatro pneus por ela”.

-Verdade! Isso é um ponto final!
Joga uma nota em cima da mesa, diz:  fica com o troco, e sai.
A mulher fica sem ação.

Chegando a casa a mulher estampa nas redes sociais:
Solteiríssima. E mais adiante. Feliz e determinada.

No outro dia, ela acordou cedo, foi ao posto de saúde e pegou o medicamento que fazia uso diário: clonazepam. Depois foi a imobiliária e alugou um apartamento a duas quadras do ex.
E a tarde ligou para ele nesses termos:

-Estou fazendo um churrasco aqui em casa, e logo me lembrei de  você. Por que não pensei. Você gosta tanto de churrasco... Podemos ser amigos ou não?
Do outro lado da linha Arnaldo sem saber o que responder acompanhava toda a conversa de Adelaide com o seu inequívoco arrã, arrã.
Ela dizia:
-Convidei também um casal de amigos, é bom para você se enturmar. Agora solteiro né?
Arnaldo surpreso concordou, afinal ainda gostava muito dela, e talvez sobrasse, no final da festa, restos de carinhos.
Quando chegou o samba já rolava, a carne na brasa e a cerveja gelada.
Adelaide vestia um short curto, e o casal dançava.
Ela prepara uma bebida para ele. Acrescenta o medicamento. Em dez minutos ele estava desacordado. Ela pega uma marreta de construção e bate-lhe forte na nuca, que o crânio se esfacela.
Depois com a ajuda do casal de amigos enrolam num plástico escuro e levam para desovar longe.
O lugar era ermo. Só uma empresa de reciclagem. Jogam o embrulho na vereda e tocam fogo.


Quarta:


José levantou cedo. “Tenho que resolver isso meu Deus, estou acabando minha vida nas drogas”.
Caminhou por quilômetros até a boca. Estava fissurado. Pediu fiado. O chefe falou para ele que já tava por aqui com ele, e que ele já devia muito e que era melhor pagar o que devia primeiro.
Ele falou que esperasse mais um pouco, que o pai era aposentado, ganhava pouco e quase não dava para segurar seu vício. O chefe apontou a arma para o seu peito.
-Leva esse cabra daqui! Dá um fim nele!
Arrastaram José até um beco e deram um tiro no meio da testa.
Nesse momento o pai dele já o procurava na vizinhança, quando alguém gritou:
-Seu Pedro! , encontraram agora um presunto, lá na invasão. Parece muito com o filho do senhor!
Chegando ao local o velho reconheceu o filho e acendeu uma vela. A cabeça separada do corpo. O pai lamentou o ocorrido e disse que tinha pedido para o filho parar com as drogas.  “Infelizmente aconteceu isso”, comentou o pai da vítima.
Segundo o delegado do caso, o fato de estar com as mãos amarradas pode indicar que José tenha sido morto em outro local e levado para ali apenas como uma forma de “se desfazer do corpo”. Completou:
          -Deve ser ajuste de contas e como sabemos, nada funciona sem dinheiro, nem igreja.

Quinta:
Zé empurrou a porta e entrou. Casa simples. Um barraco. As mulheres o esperavam sentado na sala. Sim ele tinha duas mulheres, em convívio pacífico: A legítima, que a chamava de Branquela e a amante, baixa e gorda.
 Ao seu encontro:
-E aí Zé, vendeu todas!
-Tudinho! Veja! Retirou o pano que cobria a cesta.
-Ué Zé, mas não é que a diaba tem uma carne boa!
-É mesmo! E a menina como tá?
- Lá no quintal brincando, até comeu também!
-Não brinca! E é, é?
-Pois!
Todos conheciam Zé da coxinha naquelas redondezas. Todas as manhãs, passava gritando, e a molecada repetia: É de gato seu Zé?  Ele xingava com palavrões, depois falava com seu sotaque característico:
-É não miseráveis! E replicava: - É de frangoooo!  seus filhos da puta!
Mas verdade seja dita. Todos gostavam das coxinhas. Dizia-se delas que eram bem preparadas, ótimo tempero, com bastante carne, macia e com gosto indescritível. Era grande a freguesia.
-Vai ao quintal. Vê a menina.  Entra, olha o fogão. Um osso, comprido de aparência de uma tíbia. O pega e fica roendo, as partes que não alcança com os dentes cutuca com os dedos.
Com a cara cheia de gordura pergunta para as mulheres se tinha acabado.
Branquela coça a cabeça e diz, olhando para o quintal:
-Logo temos que buscar mais!
A gorda sentada no tamborete.
-Essa é a mulher, é? Zé solta o osso:
-É! O homem deu para a semana toda!
Vai até a sala e coloca um cd. Fazem um tipo de pantomima, pegam um litro de cachaça e vão beber.
Acordaram com a polícia arrombando a porta.

Só uma pessoa na comunidade não gostava dos salgados. Esta pessoa agora abanava um jornal na cara do marido que lia, entretido a página de esporte: “Oh! Veja isso homem! Leia aqui! Empurrando o jornal para o marido. Ele deixa os esportes de lado e lê as notícias policiais. “Presa família de canibal”. Ela continua: “Esse sujeito aqui, que diz pertencer à seita “alvorecer”, e que mata as pessoas para saciar a própria fome, não é nosso vizinho, o vendedor de salgadinhos? 
Veja o que a policia diz dele: “Ele mata, descarna as vítimas, guarda em freezer e vai comendo no dia a dia. Com o resto faz salgadinhos para vender a freguesia”.
O marido olha com náusea. 
A mulher ainda diz: “Parece ficção, mas esta aqui ó, todos os dias nas páginas policiais”.
111

















Nenhum comentário:

Postar um comentário