sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

A cidade de barro


                                                       




                              A cidade de barro


          
 Seu moço eu vou contar tim tim por tim tim a história desse pedaço de torrão que um dia foi um feliz povoado. Puxa a cadeira e senta aí nesse tamborete e toma um café. Não repara a bagunça. Vou contar em atalhos para não cansar o senhor.

          No início tudo aqui era a fazenda do finado seu Egídio.  Ele tinha mais de cem escravos no cultivo e colheita do café. Depois da crise do café o filho dele Seu Eupídio arrancou o cafezal e passou a criar gado de leite e corte. Isso bem depois da lei áurea e a mão de obra se tornar escassa.

          Com o movimento de sobe e desce de pião nessas paragens ele achou por bem abrir ali na encruzilhada um armazém, bem sortido de secos e molhados. Tinha de um tudo um pouco. Ali paravam tropeiros, fazendeiros, mascates, peregrinos e todo tipo de gente. Esse comércio prosperou tanto que em volta ele construiu sua morada  um amplo bangalô  todo avarandado que fez vir de Ouro preto as telhas coloniais e depois foi construindo aos poucos  casas para alugar aos seus empregados.

          O certo é que em meados de mil novecentos e quarenta e cinco já possuía uma rua de mais ou menos cem metros de casas geminadas dos dois lados. No meio delas uma capelinha, bonita que só vendo, eu fui batizado ali.  A padroeira é a virgem Maria.No lado de lá mais distante montaram um cabaré da Dona Sônia e uma delegacia. Tinha dois ladrões: Um que gostava de comer a galinha dos vizinhos e o doido José que roubava as mulas para passear e fazer besteiras com elas encostado nos barrancos.   Na virada do morro um pequeno cemitério com umas cruzinhas de madeira enfeitadas de rosas amarelas.

                 Na maioria das vezes a cadeia se encontrava  vazia, pois o lugar era tão pacato  que se alguém andasse pelado ao meio dia era capaz de ninguém notar. Os pacatos habitantes que não somavam mil  essa hora estavam seguramente  tirando uma sesta, pois por aqui não havia chegado  a televisão e o rádio era artigo de luxo e só onde tinha um era no armazém onde o povaréu se juntava aos sábados em redor ouvindo as notícias vindo de longe.  Dizia-se que o tempo aqui não passava.   Nem as novidades chegavam. Passavam ao largo deixando-nos quietos em nossa vidinha de pequena vila perdida  no sertão das Minas Gerais. O relógio da torre quando tocava as doze badaladas, o som metálico do bronze ecoava  tão longe nas  serras  que o eco quando voltava   monótono  e leitoso  pesava na cabeça dos viventes.

           Essa era a nossa vida moço. Acordar cedo. Tirar leite. Plantar a roça, comer e dormir de novo. Essa era a batida de todos os dias. E ninguém reclamava. Todo mundo gostava. Éramos por assim dizer um paraíso perdido.
Pois bem, um belo dia, um político passou por aqui e conversa vai e conversa vem com o dono do armazém  falou do besouro azul, que já era hora desse belo povoado se tornar  um distrito e  Seu Eupídio ficou tentado e pediu que esse condenado desse político intercedesse  na capital por nosso povoado.  Enfiou na cabeça de um e de outro que em se tornado distrito  era aquilo e aquilo outro, que o capital ia olhar para essas bandas esquecidas que era capaz de alguma firma se interessar  e montar algo nessas paragens e se tornando distrito logo se tornaria uma cidade  e em o asfalto dando as caras aqui nessa terra longe do mundo e de Deus tudo mudaria como um passe de mágica. Que ia melhorar nossas vidas e até poderia trazer uma torre repetidora de televisão e antenas para termos nossos celulares. Jogaram toda essas lorotas que conhecemos. E moço um dos pecados da gente é a ganância. E todos cresceram os olhos.
            Dito e feito. Um ano depois passamos a distrito. Teve uma festança ali na praça por dois dias. O armazém faturou os burros de dinheiro e a pensão nunca teve tão cheia. Depois dessa festa dizem que os jovens estavam mudados  isso porque Das Dores, achou no lixo umas  tal de “camisinha de Vênus” e diversas lanças perfumes trazidas pelos da capital. Teve comentário raivoso do vigário no sermão de domingo.

            Eu mesmo não notei diferença alguma, eu queria era paz e tranqüilidade, tínhamos nossas criações, nossas roças, onde o boi pastava tranqüilo, os canários vinham cantar nos nossos terreiros, nossos riachos tinham águas límpidas, olha que eu bebia  na palma da mão mesmo, uma água boa, leve e viva seu moço.

          O que me deixou fulo da vida foi saber que  ao passar a  distrito fomos obrigados a pagar impostos, inventaram  taxas e mais taxas  de tudo que é coisa e jeito e eles diziam que era para termos direito a uma melhor saúde, educação saneamentos.  Quando recebi  o carnê tinham invadido a vida da gente e mudaram até o nome do povoado. De “Duas porteiras” passou a ser chamado de São Sebastião do mato a dentro. O absurdo que eu achei moço é que agora pagávamos as coisas que eram nossas de direito. Imposto de terra, lotes de casas, IPTU e  até conta de água. Não vi vantagem alguma dessa de povoado virar distrito. Mas a maioria achou, só porque colocaram um posto de saúde que o médico vinha uma vez na semana, e acredite, passamos a ter mais doença, pois antes era só verme, bicho de pé, cobreiro e era tratado aqui mesmo pela benzedeira  Maria Preta que aprendeu a arte com sua mãe que foi a primeira escrava que conseguiu a alforria aqui.

          Pois bem, vai olhando onde entramos bem. De pouco ou nenhum dinheiro, pois todo o comércio era tudo feito na base do escambo, passamos a devedores e tínhamos que pagar de nosso lucro e bolso para uma cidade vizinha pois passamos de um povoado livre a um distrito subjugado a outra prefeitura a outra cidade a outras gentes. Veja só onde enfiamos nosso burro. Pois bem, vai escutando.

           Apesar disso tudo isso acontecendo moço, me adesculpe o que vou falar, mas o fumo ainda não tinha entrado nada. Faltava o resto pra acabar de arrombar. Vai vendo.

          Um dia de agosto, sempre esse mês agourento, chegou um engenheiro aqui, foi tirando fotografia com uma máquina bem moderna subindo as ribanceiras, anotando em bloco de papel e eu bem olhando desconfiado tudo aquilo e ai de súbito eu perguntei para ele o que era toda aquela curiosidade por nossas terras. Ele nem olhou para mim. Anotando algo em seu bloco, disse seco, que trabalhava para uma grande mineradora, gente rica que estavam  interessados em montar algo grande aqui.

           Vejam como são as coisas. De povoado viramos distrito e aí devemos taxas e mais taxas e viramos devedores e aí é necessário vir às indústrias para compensar e toda essas porcarias que poluem e tiram nosso sossego.

           Na época tentei tirar mais algo dele, do engenheiro, prometi-lhe uma pinga boa de cabeça que eu fabricava no pequeno engenho, mas ele escorregava mais do que peixe goiamum. Contou pouca coisa. Ele abriu a boca mais para  a dona da pensão e a notícia se espalhou como praga.

           Nossos filhos você sabe, os jovens tem ambições e começaram a falar aos quatro cantos que tudo seria bom, que ia dá emprego, a vida ia melhorar, era capaz que no futuro até construíssem shoppings essas coisas modernas e todos ficaram cegos em seus sonhos e desvarios.

           E chegaram as máquinas. Vieram cortando as estradas, alargando, derrubando árvores, trocando cancelas, plainando , abaixando morros, cobrindo riacho e eu aqui ó só olhando desconfiado pensando comigo, essas coisa não pode dá certo. Se Deus fez aquilo assim era para ser daquele jeito. Onde tinha pedra eles arrebentavam com dinamite. As criações sofreram essa época. Deus o livre. Os gatos e cachorros quando desconfiavam já corriam todos para debaixo das camas.

          Passou o resto do ano inteiro zuando como maribondos lá para o lado da serra. A dona da pensão aumentou o número de mesas já que os choferes e seus ajudantes desciam as onze horas,  esfomeados na maior algazarra e o lucro foi enorme. O dono do armazém soltava fogos de artifícios toda sexta quando fechava o caixa.

          Pode notar seu moço que essas coisas só dão certo para os capitalistas. O povo mesmo come o que o diabo amassou. Vai vendo.

          Mas o mal seu moço anda pelas veredas. Esconde-se atrás das portas, vai à missa, anda com a gente. Para a população não faltavam serviços. Embora fossem uns serviços assim, mais parecido com a escravidão.

          Não sabiam coitados que eram meras peças de dominós enfileirados. Se um caísse todos iam juntos.
               Tarde soubemos que o principal, a firma de mineração seria instalada na terra do político, na cidade vizinha moço, pra nós aqui disseram que iam construir uma grande barragem para guardar, tal de “rejeito”.

          Rejeito moço interpretando as palavras do engenheiro é a mesma coisa que acontece com nós, segundo ele,mesmo se comermos salmão ou outra comida de gente rica vamos defecar merda. Fedorenta mesmo.

          A mineradora é do mesmo jeito. Retira o minério, vende por um bom dinheiro trás o progresso, mas tem seus rejeitos também. E assim teriam que construir uma barragem para guarda-los.

          Aí entra a ganância.  Acho que isso é que faz muita gente ser cúmplice de mal feito.  Só visam os lucros. Pois quando souberam da construção da barragem para depositar os tais rejeitos os donos de terra ofereceram glebas e mais glebas. O engenheiro ainda falou que iam pagar bem  e que otários eram quem não aproveitassem tal negócio que aparece assim uma vez na vida outra na morte. Frisou segundo sua palavra em total segurança sem risco algum para a população.

          Eu ainda pedi a palavra e disse que se não tinha risco algum, porque não construía por  lá mesmo. Aí ele disfarçou e mostrou para os proprietários de terra a quantidade que a firma precisava, seriam terras devolutas imprestáveis e pagariam bem.   
 E como a população já estava com as mãos sujas um pouco mais não fazia diferença. E aí ofereceram terras para o feito. A mineradora escolheu  uma que ficava entre os três morros.

           Prometeram não  interferir nos pastos, nem nas nascentes, nem nos rios etc e etc e tal, podíamos dormir tranquilos.
          Todos menos eu.
          Eu observava as máquinas trabalharem dia e noite. Cavavam , juntavam, levavam, despejavam como um grande formigueiro. E aos poucos a barragem ia tomando forma.

          Um caminhão de vez em quando descia em desabalada carreira, levantando poeira para pegar o óleo aqui embaixo, nos tonéis azuis que os moleques brincavam rolando por cima. Eu tinha dado fé disso. Que um dia podia pegar uma criança dessas.
 
          Um dos choferes um dia percebendo um cão atravessar a estrada em vez de frear acelerou e passou  em cima do coitado. Pegou bem no quarto traseiro. Desceu do caminhão pegou um martelo de bater no pneu para saber a libra, e desceu com força na cabeça do coitado. Quando ele viu que eu vi,  desculpou-se dizendo que era para o bichinho não sofrer mais. Puta que o pariu eu pensei.

           Comecei a xingá-lo dizendo para ele que eles só trouxeram desgraça, que inda hoje uma mulher da vida montou casa lá no fim da rua e não eram como as da Dona Sônia não, eram muito mais exibidas,  para servi-los e que nosso distrito aumentou a violência,  já não tinha só ladrão de galinhas que aumentou o numero de furtos e estava de mal a pior. O homem entrou no caminhão, cuspiu para fora e acelerou.

           Fui ao armazém e contei a todos que estavam por ali esses  atribuíram essa maldade do chofer ao cansaço e ao estresse do trabalho e que no outro dia iríamos falar com o chefe deles.  Eu mantive distancia desses elementos. No dia seguinte quando fomos procurar eles na pensão soubemos que a barragem estava pronta e que eles tinham voltados todos para a capital de madrugada.

          Pois bem, a barragem surgiu assim entre os três morros como milagre. Para os moleques serviu como mais um recanto para as brincadeiras, pois rolavam em papelão na maior velocidade e foi preciso o chefe da barragem que ficava averiguando tudo de uma casinha construída para isso bem do alto olhando de binóculo, dá ordem para dois brutamontes atirarem na bunda de quem ousassem ultrapassar seus limites.

          -Um tiro de sal ele disse. Bem na bunda!

           Dizem que um tiro desses deixava o alvejado uma semana sem poder sentar. Pois bem, mesmo com esses brutamontes e o risco do tiro de sal as crianças não pararam de subir a barragem para suas estripulias.  Brincavam constantemente de se esconder, de salto com vara e de vez em quando os bombeiros eram chamados para serem retirados de dentro da lama.  Não adiantavam castigos, pancadas; as crianças puramente se cativaram pela barragem.

          Até eu que não sou fácil de me enganar caí na armadilha seu moço. Até bem pouco tempo atrás eu subia lá, para vê o por do sol, ou levar uns passarinhos, soltar pipa ou até ficar de bobeira olhando tudo em volta.

              Era bonito lá de cima. Até o padre da igreja um tempo desses discorreu num sermão imenso, a respeito da felicidade que era ter uma empresa desse porte no distrito ter escolhido nosso  para implantar tão importante empresa  deveríamos nos orgulhar imensamente.  Até o açougueiro que existia ali na esquina, moço, acostumado a derrubar boi brabo e matar na mão enfiando o punhal entre os chifres  gabava bem a barragem, que tem seu respeito; se um ou outro que falava mal, vê-se logo que era por despeitos, não tiveram seus filhos empregados e tiveram que sair da cidade. No mais todos a respeitavam. Era Deus no céu e a mineradora na terra.
 O dono do armazém já contava como certa sua candidatura a primeiro prefeito da cidade se nosso distrito virasse um dia cidade.  Sobre a existência de minério especulou-se que foi um gringo que passou há muito tempo por aqui, colecionando insetos principalmente borboletas. Não só as borboletas  mas cortejando   a filha de Matilde a costureira que depois criou sozinha um filho desse americano que fugiu logo que soube da gravidez.

         Ela é quem ultimamente ficou a cargo de desenhar o uniforme da mineradora e inventar o logotipo.

          Não sou hipócrita em dizer que a barragem  não nos trouxe coisas boas.  Claro que trouxe. E  fazia parte de nossa paisagem. Estávamos tão acostumados com a barragem ali, parecendo um velho crocodilo parado que se um dia ela desaparecesse,  eu nem sei o que aconteceria, nem ousava falar. Transformou-se em orgulho e pessoas de cidades vizinhas vinham aqui só para vê-la.   Chegavam aos montes em ônibus e carros particulares e iam direto para seu dorso tirar selfies e mais selfies.

          Mas moço o pior da história eu vou contar agora. Foi de noite. Chovia solto. Parecia que São Pedro tinha aberto todas as torneiras do céu. Isso foi. As goteiras caiam dos canos na grossura de três dedos assim ó. Só vendo. Os riachos enchiam rápidos e eu aqui matutando fumando um rolão que havia comprado no armazém. 
             Meio ressabiado com tanta água  vesti a capa de chuva, foi minha salvação, e saí para ali onde tem aquela touceira de bambu gigante. Pois bem. Quando cheguei ali ouvi uma espécie de estouro lá pra riba. Diacho eu pensei. Foi então que resolvi subi ali no ponto mais alto de onde podia avistar a barragem. Foi no momento que vi com esses olhos que a terra há de comer, a parede da barragem rompendo feito um bolo que partimos na mão.

          E aí seu moço, comecei a gritar e correr mais para o alto, e veio aquele mundão de lama cobrindo tudo, as casas, os carros, os bichos as pessoas. Mas não dava para vê tudo, estava escuro. Só de vez em quando ouvia um grito e um relâmpago clareava  a paisagem marrom.

          Só de manha seu moço ai deu vontade de chorar. Sabe aquilo tudo que você construiu com suor e muita luta tudo debaixo de lama. A igrejinha só se avistava a cruz. Lá de cima a lama veio rasgando a terra e ficou como uma ferida profunda. Tinha carro pendurado nos tetos das casas. De vivo tinha eu e um cachorro que ressabiado tentava se livrar da lama. Depois vocês souberam moço. Veio televisão do mundo inteiro. Diz que essa água barrenta chegou até o mar. Eu não duvido. Agora busco meus direitos. Um direito que jamais vai ser totalmente resolvido. Prometeram construir nosso distrito noutro canto. Eu estou vivo graças a Deus, mas, meu coração esta partido.

         Nada vai ser igual. Uma cidade construída assim não tem alma. Cidades projetadas não têm curvas nem esquinas.
Agora veja o que sobrou de nossa “dois Riachos”. A maioria das casas, das ruas desapareceu.

         O que parece agora? Veja com seus olhos. Uma cidade fantasma. Sem vida. Sem pássaros, sem peixes sem borboletas, sem gente.
O que nos levou a isso? A ganância seu moço. A arrogância.
Agora veja o que se parece?

  Uma obra inacabada. Um esboço de barro de uma cidade perdida.




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