quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Era a copa do mundo


      



    Estávamos numa mesa ali na barragem, comendo tucunaré frito com cachaça de cabeça. O espelho do açude Mãe d’água estava tremulando. Canoas de pescadores ancoradas as margens.
      Zé das jumentas começou:
      -Olhe! Com certeza a melhor foi a de 82, visse. Sei escalar todinha, na ponta da língua. Pense num  meio de campo porreta: Zico, Sócrates e Falcão. E os laterais Éder, o canhão e Júnior nosso conterrâneo. Futebol arte.
      Nisso entra Dalvinha no bar. Saia curta. Olhamos pros tornozelos dela. Grossos e roliços. Debruça-se no balcão. Pediu uma caixa de fósforos. Talvez tivesse ido ali, para investigar o que falávamos. Cidade pequena cuida da vida alheia.
 Sai rebolando as cadeiras.
      -Viu?
      -O que Boca mole?Perguntei.
      - Ela tá com rolo por aí.
      -Não acredito, digo. Tão novinha!
      Canhoto calado. Mastigava uma posta de peixe. Toma uma talagada e joga o resto paro o santo. No pé do balcão.
      -Rolo com quem, pergunto.
      -Com Severino do Fenemê.
      -Verdade?
      -É.
      -Aquele que faz frete pra João Pessoa.
      -O Próprio.
      -Que é casado e tem dois filhos de peito?
     -Esse mesmo.
      -Vixe!
       Zé das Jumentas dá uma tapa na mesa. Levanta-se e alisa as mãos. Tonho do bar grita lá da cozinha:
      -Mais um tubo de cana?
      -Vê mais um que hoje tô com a gota serena! Vixe! E  demos uma gargalhada.
      -As mulheres cheias de preconceitos comigo e dão para qualquer um?
      -E ela é boa visse! Eu disse.
      -Ai! Ai! Uma potranca completou Zé das jumentas.
      - Será que é caso antigo?
      Manoel da Kombi passa buzinando. Não escuto a resposta de Zé.
      Encho o copo dos três. Canhoto palita os poucos dentes.
      -Também acho que a melhor foi a de 82. Voltei ao assunto de início. Mais técnica. Mas a de 70 tinha na linha Jairzinho, Gérson, Tostão, Pelé e Rivelino. E trouxe o caneco.
      -Oxente! A de 58 trouxe também o caneco disse Zé das jumentas. E tinha Djalma Santos, Didi o “folha seca”, batia uma falta como ninguém, Zagalo e tantos outros bons jogadores. Esfrega as partes.
      -E você Canhoto, qual sua preferida, perguntei cutucando-o com o pé.
      Ele tomou de um só gole a cachaça, fez uma careta, pegou uma siriguela para tirar o gosto, cuspiu no canto e falou:
      -Se vocês jurarem não me interromper darei minha opinião e conto tudo do jeitinho que aconteceu.
      Aceitamos de pronto, pois não era todo dia que Canhoto falava.
       Um palito no canto da boca.
       -Para mim, que sou mais velho, já vi muita coisa, já passei por muitas secas medonhas e já vi Mãe d´água  sangrar mais de três metros na década de sessenta, uma sangria medonha. Digo e repito.  O melhor time que esses olhos que a terra há de comer viram jogar visse, foi o saudoso 4 de abril. Eh! Time porreta aquele. A seleção brasileira e qualquer outro time ficam  aqui ó no chinelo.
      Ficamos de boca aberta. Não esperávamos por essa. Nem ao menos conhecíamos. Continuou:
      - Lá para década de cinquenta. Um time de monstros E no arco advinha quem pegava tudo? Quem? Quem?
      -Vá fale! Gritamos.
      Não sabíamos. Éramos mais moços. Apontou seu dedo seco para mim.
      -Euuuu? Ele riu com pouco dente.
      -O melhor arqueiro que já vi atuar. Seu pai. Saltava como um anjo. Muito melhor do que Ado, Félix, Leão e tafarel. E ainda pegava sem luvas.
      Nisso rebobinei na cabeça toda lembrança como num filme mudo. Aos domingos, eu fazia o dever correndo, em dia de jogos o dinheiro curto, saia de casa mais cedo à procura do melhor lugar para entrar sem pagar. Muitas vezes era pela torrefação de meu tio. Era só pular um muro, passar por baixo das moitas de melão de são Caetano fugir do olhar dos vigias e pular um esgoto a céu aberto. Pronto. Estava no gramado. Era só comprar uns roletes de cana caiana e ficar sugando o suco doce e assistir a partida em pé ou sentados na  beira do gramado. Ainda levava o estilingue para dar uns tiros em algumas lagartixas pelos muros
      Já quando meu pai era o juiz da partida ele tinha a prerrogativa de nos colocar para dentro. E foi com prazer que fiquei sabendo dessa arte de meu pai como tantas outras, como fazer o melhor pião ou carrinho de madeira. Tive o primeiro caminhão com rodas torneadas e feixe de molas da cidade.
      Olha para os lados e tosse seco. Observa as nuvens. Ele sabe quando vai chover.
      -Teve um jogo aqui bem depois da inauguração do cine CAP lá no DNOCS. Por sinal o primeiro filme que passou foi “O corcunda de NotreDame”. Não gostei. A molecada também não. Só os adultos. Depois passou D`Jango. Um faroeste porreta que só vendo. Foi no dia que Mané da padaria foi ver com toda a família. Na ocasião, quando começou uma cena de  tiroteio, -pense num homem doido da gota -,ele como nunca tinha visto aquilo, sacou da arma, e começou atirar para todos os lados.
      Na delegacia em frente do delegado Bigode ele se explicou desse jeito: “O que você faria compadre. Toda sua família correndo risco de morte, eu tinha que fazer alguma coisa, não é?”. 
      Para o delegado não restava alternativa senão libertá-lo, sem antes falar assim: “Seu Manoel aquilo tudo é ficção, são imagens vindo de uma película, em velocidade dá a impressão de movimento essas coisas”. Mas são somente retratos enfileirados.
      Lembrei quando fiz meu primeiro cineminha. Uma lâmpada cheia d água, uma caixa de sapato e uma lâmpada acesa.
      Ele ainda falou: “Pode ser tudo isso, mas que não ponha em risco minha família.”
      E essa história se espalhou e virou piada contada até na sacristia da igreja Santa Rita de Cássia. Quando o Padre Andrade notou que já estava virando chacota, fez um sermão na missa do domingo seguinte, que era o de ramos, a favor dos humildes e simples e defendendo Seu Manuel, que era pai de família exemplar essas coisas.
       Todos nós sabíamos que não era bem assim, que seu Manuel, andava muito pela rua do rio atrás das mulheres, mas não seríamos nós a delatá-lo. Afinal de contas tínhamos nossos pecados.
      Pois então como ia contando, o time 4 de abril que seu pai jogava, ganhava de todos os times da redondeza, como cajazeiras, Souza, Patos, Pombal. Era o terror da região e se qualquer time de bosta desses aí, até mesmo a seleção brasileira viesse aqui no sertão tomava uma surra de nós. A camisa era igual a do flamengo, rubro negra. Uma beleza que só vendo.
      Pois então numa decisão de campeonato contra o time de Souza, lembro-me disso muito bem, o nosso time 4 de abril seria campeão pelo empate. Pois veja, aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo o juiz tal de Capitão Estevão teve a coragem de marcar um pênalti contra o time da casa.
      Esse homem é louco pensei, mesmo vendo que foi um lance indiscutível.  Nosso center four que era o Orlandão, tinha a fama de mau desde que deixou um paralítico lá para as bandas de Cajazeiras.  Quando viu o ponta esquerda deles fazendo fila nos nossos rapazes, gritava trisca! Trisca! Trisca! E quando viu que não tinha jeito, ninguém derrubava o curisco fora da área, rosnou lá de trás e gritou deixa. Se o Juiz ouvisse marcaria falta. Nisso quando o baixinho tocou na frente e penetrou na área, Orlandão  pulou com os dois pés no pescoço do arataca.  Era um bostinha de nada, mas veloz que nem a luz. No canto da pequena área onde não nasce grama. Subiu poeira na venta. Ouviu-se um estrondo e um apito. Triiiiiiiiiiiiiiiiii!
      A torcida ficou louca, Pedro pistoleiro sacou da arma, queria matar o Capitão  a todo custo, mas disseram que o tal juiz era militar reformado de Piancó e chegou a turma do deixa disso e por bem tudo se acalmou, pois Piancó e Coremas já vinham em atritos de longa data não era certo continuar essa briga eternamente. Somente Joaquina e suas primas, as meninas da rua do rio ainda gritaram “isso é que é um filho de uma rapariga, merece que pegue um cancro no meio do cu, essas coisas de baixo calão que tanto nos envergonha. Pois bem. Quando tudo acalmou fez-se um silêncio bruto. Só as cigarras cantavam no fim da tarde. O centroavante deles se abaixou, beijou a pelota de couro cru, correu e bateu de canhota. Para a esquerda voou a chuteira e seu pai voou atrás. Não havia observado o fato. O filho da puta do ponteiro quando tinha se abaixado soltara o cadarço da chuteira, no intuito de enganar. Ninguém tinha percebido o engodo, a isca visse? Pois olha. Quando o cara chutou a bola com a direita teu pai já estava batido. Foi aí que eu vi uma coisa que até hoje arrepio ao contar. Veja! Mostra os braços. Seu pai  viu que enquanto  ia voando  atrás da chuteira a bola corria mansamente do lado contrário. O arataca já corria vibrando para sua pequena torcida lá perto das bananeiras quando seu pai, - Canhoto me fitou dentro dos olhos, tomou mais uma talagada e continuou, - Seu pai fez uma coisa que só beija flor faz. Parou no ar e nessa zona morta de segundos, enquanto a bola rolava mansa para lado contrário ele retesou os músculos acostumados no trabalho pesado,parou no ar e daí seguiu voando noutra direção. Quando a bola ia cruzar a linha do gol,  puxou-a pelo rabo. A torcida enlouquecera. Pedro pistoleiro sacou o trinta e oito e ficou atirando para cima, Joaquina e suas primas escandalizaram a cidade ficando no meio do campo só de anáguas e uns jovens pegou seu pai colocou sobre os ombros e num pique só, fizeram a volta olímpica.
Fomos campeões.
25/06/82

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