sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O circo





Eu e meus irmãos, somos cinco, três homens e duas mulheres, desde pequeno fomos por assim dizer criados como bichos. Não que tivesse faltado amor, longe disso, fomos criados como dizem, um pão  na mão o pau na outra. Nossa mãe era cuidadosa até demais e queria nos ver sempre limpos, vestidos todos iguais, moda da época, parecíamos pares de jarros, e como lutávamos contra isso esse padrão, ela com raiva de nosso desdém, quando chegavam visitas ao mostrar a casa, costume antigo das pessoas do interior,  falava compassada assim:

          -Esta é a sala, esse é meu quarto, era última moda uma dorminhoca sobre a cama.  E aqui... O quarto dos bichos.

Naquele tempo dormíamos de rede, costume dos nordestinos, e embaixo delas três poças enormes de urina.
Aqui um parêntese. Não era nossa culpa juro. Meu irmão mais velho tentava a todo custo parar esse vício, mas não conseguia. “Um dia não tomei água a noite, não fiquei perto de fogo, pois diziam que o fogo fazia ter a urina solta, e, demorei a dormir vigiando.  Altas horas deu aquela maior vontade de ir ao banheiro, e levantei pé ante pé para não acordar ninguém levantei a perna do calção  sem olhar para o fundo, -   aqueles banheiros que tem um buraco no chão  uma enorme fossa e tínhamos o maior pavor de sair de entre os excrementos qualquer monstro horripilante, - e relaxei deixando o líquido morno descer. Morno sim, pois nesse momento senti o calor nas pernas e atinei que estava na rede, mas agora era tarde, o líquido já descia,  o banheiro fora mais  um logro dos sonhos, e como tinha começado agora era relaxar e sentir  escorrer naquele calorsinho tão bom pelas pernas e que encheu a mesma poça no piso de cimento queimado.”

Uma semana antes papai já tinha prometido uma surra de palmatória,  - Palmatória é feito de madeira dura parecido com um martelo de bater carne, usado para castigar as mãos -, e foi justamente nessa fossa que eu havia jogado a palmatória. Com medo da surra dei um fim nesse objeto tão perverso. O fedor era insuportável o que nos fazia sair do banheiro rapidamente. Eu mesmo prendia a respiração e tentava fazer o serviço em segundos. Muito tempo depois de passar os anos aprendemos que esse tipo de toalete era uma construção sábia, pois nos mostrava o quanto valemos “nada” perante a vida como dizem as pessoas nos velórios:
          -Não valemos nada!

Foi nesse mesmo banheiro que  nos juntamos uma noite para dar as primeiras tragadas nuns cigarros feitos de folha seca. Engasgamos com a fumaça. Era ali também que víamos  as revistas de mulher pelada. Era nosso esconderijo  nosso “bunker”.  Se viesse alguém era só jogar a revista lá no fundo.
         
     Já boiavam no meio das merdas, Vera Fischer, Xuxa e outras estrelas internacionais.

E foi por tudo  isso que nessa manhã quando o circo chegou mamãe disse:

-Nenhuns dos três vão. Ou param de fazer isso ou não vão ao circo.

As irmãs estavam livres, há muito tempo que dormiam em camas.

Quando o palhaço da perna de pau andou pela cidade gritando no megafone acompanhamos a cidade inteira. Era uma aberração depois de tudo que passamos.

          -Hoje tem espetáculo? Respondíamos  pegando balas que ele jogava:
          -Tem sim senhor.

          -Tem marmelada?

          -Tem sim senhor.

          -Tem goiabada?

          -Tem sim senhor.

          -A que horas?

          -Dezoito horas senhor.

          -E vocês vão?

          -Vamos senhor.

Depois vimos todo o trabalho dos peões para pregar as toras de madeira, colocar o picadeiro, levantar a lona, o poleiro, vimos os leões, os macacos. Passamos a manhã inteiro ali sentado no meio fio o olhar comprido sonhando em ver a passagem furtiva de alguma bailarina.
Nos dias que antecederam a estreia, fizemos perna de pau, com cabos de vassoura ou com lata de nescau. Esquecemos até o jogo de pião, de bola de gude e de empinar  papagaio.

Na sexta feira antes da ave Maria, vi minha irmã com bobs no cabelo. Desconfiei.

          -Vocês vão ao circo? Juraram que não, que estava assim para a formatura no domingo.

Desconfiei e não preguei o olho. Mas aquele tempo dormia com as galinhas. Cedo. No cair da noite estávamos todos roncando.

E veio o sonho, o calor nas pernas. Levantei. Os olhos pregados de remelas, e fui descolando um a um, os cílios quando tava difícil usava urina. “A melhor coisa para desentupir ouvido ou tirar remelas dos olhos”. Acordei meus irmãos e vendo que não tinha ninguém em casa, tiramos a taramela da janela e pulamos.  Descemos pela praça, as luzes todas acesas, passamos a  rua do rio, em frente da cadeia, a lona do circo brilhava.   Dentro gargalhadas e músicas. Em frente à porta estacamos. Não usávamos pijamas como os outros meninos, como mamãe não sabia costurar, fazia igual à bata dos padres, morríamos de vergonha disso. O porteiro perguntou vendo nossos trajes:

          -De quem são filhas as meninas?
Respondemos em coro:
          -Meninas não!
          -Oh! Oh! Desculpe os meninos. Como chama- se seu pai?

          -Papai, meu irmão mais velho respondeu. O porteiro riu.
Era um velho vestido de palhaço.  Tentou com o menor.

          -Qual o nome de sua mãe? Ele tirou a chupeta da boca e falou:
          -Mamãe.

          -Certo! Certo! Ah! Ah! Ah! Ah! Tão me pregando uma peça. Ah! Ah! Ah! Vamos tentar novamente. Prestem atenção viu. Todo pai é papai e toda mãe é mamãe. Mas ambos têm nome.
          Virou para mim e rindo perguntou a mesma coisa.

          Eu sempre fui considerado pelos meus irmãos um lerdo. Pois desde criança tinha o olhar vago, parecia observar algo ou o nada.  Fitava coisas gerais como o  cume das montanhas ou os detalhes das coisas, o simples tecer de uma teia, o tamborilar da chuva no telhado, o desenho das nuvens, o barulho dos pés no cascalho. Desconfiava que essa lerdeza  no fundo um dia me ajudaria de alguma maneira, todas essas imagens, sons e cheiros que guardava no íntimo tornariam quando brotasse  em mim talvez meu verdadeiro  ofício que era de escrever.

          Aí eu lembrei que Jesus tem nome, que eu tinha nome, nosso gato Mimi idem e consequentemente nossos pais também.

          Tirei a chupeta, limpei a boca com o pano e falei.  Os olhos brilhando:

         -Ulisses!

         -Ah! Menino inteligente. Ulisses o herói. Então são os filhos de Ulisses do velho Félix. Hê! Hê! Já cacei muito pato do mato com ele.

Pegou-nos no colo e nos levou para dentro todos mijados.

Por dentro o circo era cheio de cores e felicidade. Quase fomos fulminados por tanta alegria.

 Deu tempo ainda de vermos o último ato da peça “O auto da compadecida”. Desde esse dia paramos de fazer xixi na rede, ganhamos cada um uma cama e na fala de mamãe deixamos de sermos “bichos” e viramos “Uns homezinhos”.
                                                       

                                                               03/03/1962

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