sexta-feira, 21 de junho de 2013

Passado e presente






Foi depois que eu achei por acaso aquela velha fotografia amarelada, que ela resolveu falar. Encontrei-a no fundo da gaveta. Quatro mulheres fantasiadas.  Na flor da idade. Riam para a vida.
 Todas as segundas eu tomava conta de minha avó. Assim que eu chegava, servi-a-lhe leite morno numa caneca, tirava do copo a dentadura dela que ficava perto do rádio e colocava em sua boca. Eu ia correndo lavar a mão com certo nojo e ela sorria um sorriso postiço, mas nem por isso menos verdadeiro. Enquanto isso eu corria ao quintal catava as seriguelas, enchia a caneca e ficava chupando aquelas delicias sentado na espreguiçadeira perto dela à janela.  Ali se passava seu mundo.
E o povo todo passava pela janela.  Bom dia Dona Ernestina, boa tarde dona Ernestina e boa noite Dona Ernestina. Eu ouvia durante todo o dia as badaladas do sino da igreja. Era ela muito conhecida das gentes. E o povo falava que as histórias dela tinham muito de verdade, não era coisa de caduca não, como dizia meu pai. Cada um que tire suas conclusões. Eu do meu lado queria só que terminasse meu turno. Um dia era meu o outro do meu mano. Esperava só os galos cantarem na hora do Ângelus. Era quando o sol se escondia atrás do jambeiro e os morcegos começavam a sair.
Aí a levava para a rede, tirava a dentadura e colocava no mesmo copo com água e ela dormia o sono dos Justus. No outro dia meu irmão vinha me render. Vinha contando alegre: “Sabe o cachorro de seu Antônio. Ele quase me pegou. Acertei-o bem na fuça pra ele aprender”. Ele dizia isso rindo. Só fazia careta quando encontrava o penico da velha lotado de bosta. E era quase todo dia. Bem feito prá ele. E nenhuma seriguela no pé.
Mas até completar esse ciclo muita coisa se passava. Ela era a boca do povo. Nesse dia eu procurando novidades nas gavetas, ferramentas de meu avô, chave de fenda, moedas antigas, biscuit quebrados, molho de chave, encontrei essa foto com um grupo de mulheres que pareciam felizes. Quem são vó?Perguntei.  Ela tomou de minha mão mirou os óculos apertando a vista e ficou um momento em silêncio. Depois não parou de falar.
Ai! Que saudade! Essa da esquerda é Marieta. Morreu faz dois anos. Aliás, todas morreram. Só sobrei eu para contar a história. Suspirou. Já essa da direita é Vanderlea. Isso mesmo. Vanderleia. Casou-se com o prefeito Valdão. Essa outra me deixa ver. Ah! É a Noquinha. Que Bom! Que bom! Essa do meio sou eu. Grande carnaval! Onde você achou? Apontei a gaveta numa cômoda velha. Aliás, tudo é velho por aqui. Tem um rádio, uma máquina de escrever, máquina de costura, arca etc.
Você não sabe, pois saiu dos cueiros agora, ela dizia. Aqui já foi muito bom. Hoje o carnaval não existe mais. Tudo culpa desses jovens tresloucados. “Bom dia Ernestina! Bom dia! Olha! A filha de seu Nico. Vem lá debaixo. Boa lavadeira. Boa menina”.
Arrependeu-se do que disse. Não! Dos jovens também não. É o tempo mesmo né? Surgem novos divertimentos. Só pode ser isso. Mas como ia dizendo, já foi o melhor da região e quiçá do brasil. Não tinha prá ninguém.  Ah! Não tinha. O povo de Piancó morria de inveja. Piancó é uma cidade vizinha aqui perto. Tem a maior rivalidade com nossa cidade. O clube Primavera, construído no tempo do prefeito Valdão era grã fino. Êita prefeito macho visse. Foi o único que trouxe aqui Juscelino. Isso mesmo. Como se fala? Juscelino cu bi xeque. Ou coisa parecida. O mesmo que construiu Brasília. Eu não sei isso de história não senhor. Foi vivido mesmo. Vendo com esses olhos que a terra há de comer. Diz até que ele tem um filho por aqui. O povo aumenta, mas não inventa. Esta história eu conto depois. Se não perco o fio da meada.  E não se avexe não que eu vou contar tudo. História e a vida, bichinho são como um novelo de lã. Tem que ser desenrolado sem pressa para ficar mais bonita e gostosa assim de se viver. Pois então. Vinha uma ruma de gente de tudo que é canto para o baile de carnaval. Quatro noites memoráveis. O ônibus vinha assim ó, tinindo de gente. Era gente daqui e de fora que iam estudar na capital. Eu acho que não era só para estudar não. Era principalmente para fazer as safadezas longe das vistas dos pais, isso sim. Para dar o xibiu ó. Pois quando não se tem olhos para se ver nem ouvidos para se escutar meu filho, o homem é capaz de coisas tão bestas que não entendemos. Por isso tais mocinhas voltavam todas com as ancas largas, mascando descaradamente chicletes, pintando a cara. Igual as raparigas daqui.  Eu que fui uma idiota. Porqueira. Dei para um homem só a vida inteira. E que Deus o tenha em bom refrigério e quando ele se foi eu já não tinha mais serventia. Só pelanca ó.
O carnaval de hoje é essa bagunça, essa merda. Dá até gastura.  Naquele tempo tinha durante o dia as carreatas e quando chegava á tardinha todo mundo ia para a matinê. Era quando as crianças iam com os pais.
E os preparativos começavam um mês antes, com a procura dos tecidos a feitura das fantasias e a lista de quem ia participar do bloco. A escolha do nome era outro problema a se resolver. Lembro do carnaval de 19. O inverno tinha sido bom e todos estavam felizes. Vanderlea escolheu. “As endiabradas”. Eu por meu lado achei um pouco de mau gosto, meio forte talvez, mas ela explicou que era para ser agudo mesmo e chamar a atenção dos rapazes. E disse para eu deixar de ser cafona.E naquele ano a disputa foi arretada.  Nosso vestido era de romanas, solto assim dos lados, deixando ver um lance das pernas. Fez o maior sucesso. Nosso bloco tirou o primeiro lugar. Era eu, Marieta mais conhecida por boquete ou mão de seda, (os nomes diz tudo), Amélia e Vanderlea depois eu conto da parte delas.
Á noite só entrava maiores de dezoito anos. Mas com jeitinho aquelas meninas mais afoitas que já tinham feito dezessete anos entravam com a ajuda dos pais. E aquele tempo a gente cheirava lança perfume. Ficávamos com uma loucura recatada. Bem mais tarde aquele presidente da vassourinha proibiu. O Jânio. Só porque esguicharam no olho dele. Deviam ter esguichado porra no puto. Bebia todas, num sabe. Proibiu também a briga de galo. Isso aí ate que eu achei justo, os bichinhos brigavam até morrer, coitados. Agora a lança perfume foi uma idiotice. Depois saiu. Deixou a gente na mão. Mas não quero falar de política não. São todos uns podres. Diziam que iam resolver os problemas das secas aqui e nunca resolveram.
Mas como ia dizendo o clube era muito bom. E para ser sócio, menino, do Clube Primavera, não te conto. Uma dificuldade. Tinha a tal bola preta. Era assim. Vou explica. Calma!  Exemplo: Alguém colocava o nome na lista, desejando o ingresso como sócio, aí os diretores se reuniam, com muita cerveja e tira gosto. O único que tomava cachaça era o juiz filho do Doutor Adalberto. O Doutor que viu todos os xibius da região. Pois bem. Ficou rico o danado.
Diziam que eles investigavam a vida do sujeito de trás pra frente. Tudo mentira. Depois vi que essa investigação era bem fajuta. Bem do jeitinho brasileiro. A metade da cidade era sócia. A outra metade era negra ou índio e aí não podiam entrar. Mesmo sendo nosso país miscigenado, porra de nome difícil, mas aqui pra nós, não espalha menino, mas tinha muita rapariga ali dentro. Ah! Tinha-se. Vixe! A mulher do prefeito mesmo, quando cheirava além da conta, subia na mesa e ficava rebolando igual às meninas das casas da beira do rio. Igualzinha. E a lança perfume deixava a mulherada louca visse. E aqui pra nós, mulher feliz e rapariga é um perigo. Ela era comidinha de todos os cantores que vinham por aqui. Agora me lembrei de Vander Lúcio. O melhor animador de carnaval dessas paragens. As machinhas em sua voz viravam poesia. Ele tinha a voz grossa e bem afinada. Ele cantava assim: “E abrem alas que eu quero passar” e Vanderlea os olhos nele rebolando ali em cima da mesa. O povo falava que foi a maior paixão da mulher do prefeito. Vanderlea não podia ouvir sua voz que se molhava toda. Isso ela me disse certa vez.
E menino, vou dizer uma coisa. Tantos cabaços voaram ali. Em torno do clube tinha uma matinha de marmeleiros coberta por aquela rama de melão de são Caetano, era só estirar um papelão e os rapazes mandavam a vara. Nove meses depois nasciam as crias. Amélia coitada foi assim. Enrabichou-se  com um janota da capital e nove meses depois já viu, veio o bruguelo. Mudou-se e muito tempo foi dona de pensão. Diziam as más línguas que não era pensão nada e sim casa de mulheres. Mas vai saber a verdade. Morreu bem velhinha um dia desses, e teve até discurso de certo escritor que lhe dedicou num jornal do comércio, alguns versos. Versos estes, que falavam de posteridade e imortalidade, essas coisas efêmeras, mas tão ao gosto do povo. Pois bem, e ali naquele clube, houve carnavais memoráveis menino.
Essa aqui da esquerda, uma amiga, que Deus a tenha, essa morreu virgem. Ela sabia enganar todo mundo. Marieta era o nome dela. Não dava a frente. Ela dava o rabo para não engravidar e não ficar mal falada. Era inteligente a danada. Também dava só para os rapazes de fora. E assim não caia na boca do povo daqui que tem a língua maior que a cara. Depois namorou dez anos com o sargento Idelbrando e permaneceu virgem. Ela contava para mim que naquela hora gostosa, quando os pais iam dormir de cansados, e ele vinha pra cima como touro louco ela dizia assim:
“Ai meu bem eu estou naqueles dias, num sabe, só se for assim por trás”, e se virava. E o sofá velho da sala gemia. E parece que para o sargento essa posição era sua predileta, pois nunca reclamou. Comeu a traseira dela dez anos á fio. No entanto soube-se por amigos do sargento que ele tentara enrabar uma nova mulher que havia chegado à casa da beira do rio e que ela disse para ele séria, que essa posição era mais caro e que muita mulher da vida odiava fazer. E que ela mesma nunca tinha feito. Como são as coisas. E uma mulher do estipe de Marieta, mulher da sociedade, sócia do clube Primavera, rainha de carnaval por dois anos, irmã do prefeito, minha melhor amiga, dava de bom grado.
Depois o sargento foi transferido prá capital, e a tristeza a abateu. Foi ficando doente, pálida e numa quarta feira de cinzas faleceu. O povo fala que o Juiz usando as suas prerrogativas, o caçou por todo o Brasil e foi encontrá-lo na década de sessenta numa cidade de São Paulo, não se falou o nome na época. Idelbrando o sargento, tinha se tornado um torturador. Sabia como ninguém tirar segredo dos outros. Colocava tachinha debaixo das unhas dos prisioneiros e esquentava até virar brasa. Outras vezes pegava uma varinha de marmeleiro, - quem conhece marmeleiro sabe como a vara é dura, - e batia com ela nos culhões do sujeito. Conta ou não conta safado ele gritava. O diabo que caía em suas mãos contava até o que não sabia.
Pois o juiz voltou de lá com o rabo entre as pernas, com medo de ser pego pelo sargento, que não gostava de comunista de jeito nenhum e se soubesse do passado de Doutor Adalberto, que em trinta, havia caminhado do lado de Prestes por todo o norte e nordeste, aí sim, de caçador poderia se transformar em caça e nesse tempo morria tanta gente no Brasil, como morreu anjinhos nesses carnavais.
Meu primeiro filho, tio seu, morreu com seis meses, coitado. Talvez devido ao modo que foi feito. Naquele tempo que já vai longe, sou do tempo da primeira grande guerra, hoje tenho cento e cacetada, meu veio Florêncio, seu avô, me roubou da casa de meu pai com meu consentimento. Naquele tempo era assim. Lembro como se fosse hoje. A noite estava enluarada tudo um silêncio só, quebrado algumas vezes pelos pios das corujas e caburé que fazia suas casas no barranco perto da porteira da entrada. Eu já me encontrava pronta, a mala feita, poucas peças. Quando ele bateu na janela, aquela virada para o oitão, que tinha uma dama da noite do lado esquerdo, eu saltei em cima da garupa do Burro, e ele saiu pisando duro por cima das flores caídas que quarava o chão de branco. E aquele cheirinho gostoso.
Chegamos de madrugada depois de cavalgar duas léguas e meia no sítio de Dona Filomena irmã dele que nos daria guarida da fuga. O quarto já estava pronto. Minha bunda doía da cavalgada. Ele veio para cima de mim como um touro e eu ainda amedrontada, com receio de meus irmãos que eram cinco, virem no meu rastro. E então com qualquer barulho eu assustava e quando ele terminou, nem vi, só ouvi ele me perguntar, se foi bom. Eu claro falei que foi que gostoso, mas confesso agora, que não foi lá essas coisas, mas estava perdidamente apaixonado por ele.
No domingo, depois que as exaltações se abrandaram, os parentes chegaram, casamos na paróquia Santa Rita de cássia, e a festa foram dois dias corridos. Essas três amigas estavam lá. Esse primeiro filho não vingou deve ser por isso. Tanta dor, preocupação e tormenta.
Outros vieram. Foram treze. Um atrás do outro. Parecia uma escadinha. Graças a Deus esses outros vingaram. A maioria tem diploma. Moram todos longe. Só seu pai que ficou por aqui e cuida de mim.
O padre que eu casei era o que melhor sabia fazer casamento. Não tinha esta história de latim não. E ele fazia a pergunta que eu sempre adorei:
“Se alguém souber alguma coisa que evite esse casamento que fale agora ou se cale para sempre”. Padre Egídio. Eh! Padre porreta!  Dizem que ele era tão bom que deixou vários filhos. Essa da direita sorrindo, virou Dona Noquinha  uma beata que teve um filho de pai desconhecido. Muito tempo depois se descobriu que Pedrinho era filho do padre Egídio. Era a cara de um focinho do outro.  Mandaram estudar lá em Campina Grande, num convento. Saiu Padre.
 Hoje mesmo vi Noquinha, passar aqui em frente, passos leves, sempre orando, cuida dos santos, varre a igreja acende as velas. O mesmo trabalho de anos. Ela que fabrica as hóstias. Até isso o padre ensinou. Lembrei duma coisa agora. Quando eu era criança, quando comunguei pela primeira vez que o padre colocou a hóstia em minha boca fiquei olhando de lado para vê o que os outros faziam: Se deixava a hóstia se derreter ou podia mastigar o corpo de cristo. Eu tinha receio de machucar Cristo. Depois vi o padre quebrar a hóstia e mastigar. Notei também que a hóstia dele era maior, e na época pensava que devia ser por ele ter mais pecado, essas coisas de criança.
O Padre agora é outro. Um jovem.  Nem vou à missa mais. As pernas me doem a vista cansada, mas nem é por isso. Não admito é ir à igreja onde o padre celebra a missa de calça jeans e tênis e ainda fuma charuto. Não acredito num padre assim. É a modernidade. Padre Egídio não, quando andava na rua, não tirava a batina. E as crianças avançavam nele para beijar-lhe a mão, pedir a bênção. Outros tempos.
Olha que absurdo esse carro que passou aqui. O som tão alto que tremeu os vidros da minha cristaleira. Meu pingüim balançou-se todo em cima da geladeira. Esses meninos agora são todos malucos. As músicas, as letras, uma perdição. No meu tempo era a difusora, que saudade. As músicas de Vicente celestino, Cartola, Roberto Carlos e muitos outros. Agora esse tal de fanque tomou conta de tudo.  Na igreja deste padreco aí, também se toca o fanque, todo mundo agora dança. Nos bailes, na igreja. Por isso que o Santo Papa lá em Roma não agüentou e saiu.
Menino e essa história de casamento gay? Como pode ser chamado de família, duas pessoas do mesmo sexo? O mundo tá perto de se acabar. É só olhar o antigo testamento. Está tudo ali para ser visto.
 Cansei. Me leve para a rede. Esse mundo ta virado e amanhã é outro dia. E com certeza, cheio de novidades.
Com um minuto estava roncando com a foto entre os braços.

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